Tombamento de Carreta na Rodovia: sobre a hierarquia das dores
Tombamento de Carreta na Rodovia: sobre a hierarquia das dores
Crônica enviada para a Academia Estudantil de Letras da Prefeitura de São Paulo.
Informou-me o pragmático rádio no caminho para a escola em que leciono: uma carreta tombou no trecho oeste do Rodoanel. Há trânsito na região.
A trágica notícia da manhã era, obviamente, sobre o trânsito. O conteúdo da carreta, porcos vivos, era apenas um detalhe editorial perante a magnitude da hedionda maximização do pesar matinal dos motoristas, do horror cotidiano do trabalhador citadino. Mais trânsito! Maldita carreta! Maldito trânsito! Maldito dia!
Durante a sequência de meu percurso, duas dúvidas angustiaram-me: os motoristas que passavam pela rodovia no momento do acidente enxergavam porcos agonizantes ou desperdício de linguiças? E, para os porcos, teria sido melhor o terror de morrer sob os escombros da carreta ou terem sobrevivido até o destino a eles planejado? (Como soube depois, um frigorífico em Carapicuíba. Minha dúvida era válida: um mecanismo de terror cartesianamente engenhado os aguardava).
Já no trabalho, tentei manter o foco nas aulas, nos conteúdos e nas obrigações burocráticas, mas minha consciência seguia preocupada com os porcos. Ah, que absurdo… pensando em porcos amarrotados, esmagados e feridos enquanto meus concidadãos agonizavam no trânsito. Que inclemente inimigo da pátria! E que tresloucado e alienado sujeito, insensível à hierarquia das dores!
Mas como eu poderia focar naquilo que deveria ensinar consciente do martírio experienciado por tais criaturas aprisionadas no intento de satisfazer a busca humana por certas nuances gustativas? Onde estariam tais porcos, entes sensíveis e inteligentes, na Geografia? Em alguma lista de recursos naturais no capítulo sobre geografia econômica? Quem sabe no capítulo anterior ao que outras espécies estrelariam como exemplos de meios de transporte ou de forças de trabalho?
Enquanto lecionava, minha mente reprisava constantemente a reconstituição da sinistra cena: sabe-se lá quantos entes sencientes, apavorados e entulhados em uma caçamba como se fossem coisas inanimadas. De repente… acidente. Horror, pavor, dor. Mortes?
Assim que pude, procurei mais notícias, para tentar saber como estavam os porcos. Prontamente encontrei uma. Seu título: “Carreta que transportava porcos tomba no trecho Oeste do Rodoanel”. Subtítulo: “Acidente ocorreu nesta madrugada na saída para a Castello Branco. Faixa da pista foi liberada por volta das 6h20 e havia lentidão no local”. Lentidão?! O horror! O horror!
Terceiro parágrafo: “Por volta das 6h20, a faixa da esquerda, na altura do pedágio, havia sido liberada. Segundo a concessionária que administra a rodovia, havia cerca de 1 km de congestionamento no local.”. Cerca de um quilômetro de congestionamento no local? Deus! Que mundo!
Mas e os porcos? Estavam bem? Estavam mal? Morreram? Impossível descobrir pela notícia prontamente redigida, já no início da manhã, visando o necessário alerta e a essencial conscientização da peregrina população.
Está certo! O que é o sofrimento de comezinhos e desprezíveis porcos acidentados frente ao corpulento e aterrador aumento do trânsito diário?
Contudo, algum leitor investigador, daqueles que carregam a luz e as trevas da dúvida hiperbólica, poderia contrapor o estarrecimento deste autor, apontando que este texto trata de fato antigo e que matérias mais atuais sobre o tema vão além do trânsito, citando também a morte dos animais. Trazem títulos como “Motorista fica ferido e bois morrem em tombamento de carreta na BR-262” e “Carreta carregada de gado tomba, deixa motorista ferido e vacas mortas”.
Sim, é fato. Mas isso demonstra que o transporte de animais vivos permanece sendo uma prática comum. E tal prática, por sua vez, é apenas uma gota em um oceano de sofrimento e violência no qual entes sencientes são tratados como reles objetos disponíveis para quaisquer formas de manejo, por mais terrivelmente agonizantes que sejam.
Exagero? Vejamos mais dois títulos: “Carreta carregada com bois tomba na BR-381; saqueadores abatem animais no local”; “Saqueadores sacrificam 70 bois após carreta tombar na BR-365”.
Claro! O que fazer com criaturas desesperadas após um acidente? Cortar suas gargantas com uma faca, vê-las agonizar até a morte e começar um churrasco. Nada mais óbvio e compassivo! E, já que estamos citando títulos de reportagens, vale apontar que “porcos têm emoções”, “porcos são mais inteligentes que cachorros” e “vacas, porcos e cabras podem sentir empatia e fazer amizades”.
Mas e daí? É preciso servir aos nossos desejos e interesses com fervor absoluto e reverência incessante, de modo que permaneçamos disponíveis ininterruptamente para a sacra batalha existencial contra quaisquer outras fontes demandantes de atenção.
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