Veganismo: uma introdução racional

Veganismo: uma introdução racional

Dennis Zagha Bluwol

Introdução

Diversos processos tradicionais de exploração e violência foram questionados nos últimos anos, décadas ou séculos. Quase todo esse esforço de aprimoramento ético, contudo, foi restrito aos limites da espécie humana, ou seja, tratou apenas de processos violentos e injustos perpetrados contra outros humanos.

Cabe afirmar, portanto, que a reflexão ética sobre as relações entre a humanidade e as demais espécies animais do planeta, por transcender os limites de uma ética voltada apenas para humanos, talvez seja a questão contemporânea que mais força o alargamento da esfera de nossas preocupações morais.

A necessidade de se rever o status dos animais em nossas considerações éticas decorre, primordialmente, de um fato: a senciência neles presente.

 

I - Senciência

Senciência é a união entre a sensibilidade e a consciência. A sensibilidade está ligada à capacidade de se perceber o mundo (plantas e animais possuem sensibilidade, mas rochas não). A consciência está ligada a se entender, de alguma forma, o que se está percebendo (diversos animais são conscientes, mas plantas não).

Grande parte dos animais é, portanto, senciente. Quanto aos animais que são diretamente explorados para finalidades humanas, possivelmente todos o sejam. Desse fato decorre que tais animais são capazes de sofrer, pois:

a)    sentem dor física, dada a sensibilidade possibilitada pelo sistema nervoso;

b)    compreendem o prazer e a dor envolvidos em cada situação, dada a consciência. Daí decorre, inclusive, que os animais expressem emoções como medo, angústia, saudades, tristeza e alegria.

A senciência dos animais já é uma certeza científica, o que faz com que não haja mais espaço na ética contemporânea para se tratar animais como se fossem objetos inanimados existentes apenas para a satisfação dos prazeres e das necessidades da humanidade.

O fato de que um ser é capaz de sofrer faz com que qualquer ação que o impacte deva passar por um responsável crivo moral. Sendo assim, uma ação que gere aprisionamento, tortura ou violência contra animais deve ser considerada automaticamente como equivocada, assim como acontece quando a vítima é humana. Dificilmente algo poderia ser mais óbvio. Seria absurdo e cruel defender a geração intencional de sofrimento a um ser.

Conclui-se, portanto, que, da mesma forma como ocorre com os humanos, os animais não devem ser entendidos como seres que estariam no mundo apenas para nos servir. Trata-se, portanto, de reconhecer o valor essencial do respeito aos indivíduos (já quem sofre é sempre um indivíduo) para todos os seres vivos possuidores de senciência.

A persistência do tratamento cruel dos animais, mesmo quando a realidade do sofrimento experienciado por eles é reconhecida pela humanidade, pode ser resumida por uma palavra: especismo.

 

II - Especismo

          A argumentação acima exposta revela que é urgente que rompamos com o nefasto padrão de pensamentos e práticas no qual os animais não-humanos são classificados como não merecedores de nossos mais básicos princípios morais. Não há sentido lógico em se conceber que uma dor gerada em humanos seja tão diversa de uma dor gerada em um animal não-humano, mas a humanidade costuma encarar com grande normalidade diversas violências feitas aos animais que seriam julgadas como absurdas se feitas aos humanos.

Tal diversidade de julgamento recebe o nome de especismo. Em suma, o termo refere-se a uma discriminação baseada na espécie do ser vivo: membros de uma espécie (humana) atribuem a si mesmos, sem nenhuma justificativa que passe por qualquer crivo racional válido, certo tipo de superioridade sobre membros de outras espécies, o que autorizaria os humanos a tratarem os animais com desrespeito ou violência, normalizando processos de dominação.

A lógica do especismo é, portanto, a mesma de outras formas de discriminação como o racismo ou o machismo. Em todas elas há julgamentos morais baseados em aspectos moralmente não relevantes da configuração de alguém, como sexo, “raça”/etnia ou espécie.

Ninguém deve ser automaticamente classificado como inferior ou como passível de ser violentado ou dominado apenas por ser mulher, homem, negro, branco, asiático, europeu, africano, pobre, rico, humano ou não-humano. Nenhum ser deve ser explorado ou submetido a tratamentos dolorosos – fisicamente ou psicologicamente – para a realização dos interesses individuais de outro(s) ser(es). Eis dois princípios morais a serem alcançados por nossa espécie.  

 

III - Escravidão e abolição

Se os animais são sencientes, devem ter o direito de não serem violentados, assim como devem ter o direito de viverem suas vidas do modo como convier para membros de suas espécies.

Como a humanidade confina tais seres e os obriga a passarem a vida servindo a interesses que não são os deles, e considerando o que já se sabe sobre a senciência e o comportamento natural dos animais, não há porque evitar usar o termo “escravidão” para se referir à condição de vida de grande parte dos animais com os quais a humanidade possui relação direta.

Tal escravidão envolve, apenas para o consumo de carnes, aproximadamente 80 bilhões de animais terrestres e trilhões de animais aquáticos por ano, fazendo com que a dieta carnista seja a experiência de violência, tortura, escravidão e assassinato em massa mais cruel, abrangente e duradoura executada de maneira intencional pela humanidade.

Além desses animais, assassinados para o consumo de carnes, outra imensa quantidade de seres é escravizada, torturada e assassinada constantemente para que eles sejam utilizados com vistas a se realizar todo tipo de necessidade ou de vontade humanas (como o consumo de ovos e leite, a fabricação de roupas, a produção de medicamentos, os testes em laboratórios, diversas formas de entretenimento etc.).

Reconhecido que o modo como nos relacionamos com os animais é uma forma de escravidão, emerge então, objetivando agirmos de forma eticamente aceitável, a necessidade de uma abolição, ou seja, a necessidade de alterações culturais capazes de transformar profundamente a maneira como os animais são vistos e tratados pela humanidade.

 

IV - Veganismo

É no contexto abolicionista acima apontado que a prática conhecida como veganismo vem crescendo e chamando a atenção da sociedade. O veganismo pode ser definido como a tentativa de vivermos sem corroborar ou patrocinar a escravidão, a tortura ou o assassinato de animais. Em suma, visando o fim da escravidão dos animais, o vegano incorpora diversas mudanças em seus hábitos, como o vegetarianismo (a alimentação vegana exclui carnes, leite e seus derivados, ovos, mel e quaisquer outros ingredientes de origem animal), o boicote a produtos com partes de animais mortos (em roupas, por exemplo) ou testados em animais, a oposição a formas de entretenimento que explorem animais (como o uso de animais em circos, rodeios etc.), entre outras mudanças que se façam necessárias.

O veganismo não é matéria de ideologia, como fazem parecer muitos veganos e muitos detratores do veganismo. Se o veganismo fosse uma ideologia, e não matéria de moral básica, seria necessário dizer que não estuprar, sequestrar ou matar pessoas seria apenas uma questão ideológica e que quem não estupra, sequestra ou mata faria parte de um estranho movimento social e político. Absurdo, certo?

O veganismo é apenas uma conclusão lógica derivada de um pensamento racional sobre a realidade do sofrimento dos animais.

Felizmente, tornar-se vegano atualmente é bastante simples. Há muitas informações disponíveis para se embasar uma prática vegana alinhada a todos os níveis de renda, gostos alimentares e opções de saúde. Empreender tal mudança é, antes de tudo, uma tomada de consciência ética e racional, pois se certo ato gera enorme quantidade de sofrimento e é possível evitá-lo, como justificá-lo moralmente?

 

V - Duas questões finais:

As preocupações com o sofrimento dos animais e com a inadequação ética de tratá-los como propriedade dos humanos têm se tornado cada vez maiores nas últimas décadas, tornando o termo “veganismo” socialmente conhecido, as preocupações com o bem estar dos animais mais presente, o incômodo com os testes em animais mais comum e produtos sem ingredientes de origem animal mais diversos e chamativos nas gôndolas de mercados.

Contudo, o veganismo segue sendo alvo de polêmica, chacota e ódio. Considerando as reflexões apresentadas neste ensaio, finalizo com duas questões:

1) Questões éticas que lidam com enorme quantidade de sofrimento não deveriam ser matéria de escolha individual, certo?

2) Como dizer, portanto, sem bizarros nós argumentativos, que o veganismo não é uma obrigação moral?

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