Aprimoramento ético: a razão basta? O caso do veganismo
Aprimoramento ético: a razão basta?
O caso do veganismo
Acredito que a melhor forma de se criar balizas éticas coerentes é pelo exercício da razão, buscando-se as melhores maneiras para que geremos a mínima imposição possível de sofrimento e aliviemos o máximo possível de sofrimento desnecessário ou injustificável.
Esse esforço criou, por exemplo, argumentos de enorme coerência e validade para justificar a necessidade ética do veganismo no mundo contemporâneo.
Esses argumentos têm sido compartilhados (com diferentes graus de qualidade) por filósofos, educadores veganos e ativistas nas últimas décadas. Contudo, mesmo que consideremos apenas aqueles divulgadores do veganismo que expõem seus princípios de forma lógica e didática (não considerando os diversos péssimos divulgadores que já representaram o veganismo nos debates públicos), seus resultados sempre foram absolutamente menores do que o desejado.
É comum que após uma apresentação muito bem elaborada, em que a necessidade de que nos tornemos veganos e o grau absurdo da violência e do sofrimento gerados pelo carnismo fiquem totalmente óbvios, quase ninguém, ou mesmo ninguém, mude seus hábitos, mesmo dentre aqueles poucos que choram ao serem expostos a certas informações ou imagens. Da mesma forma, após tantos anos de exposição pública de argumentos veganos, quantos por cento da sociedade aderiram a tal proposta?
Tal fato coloca uma dúvida (nada nova na história do pensamento humano): compreender algo racionalmente é suficiente para que um ser humano mude sua conduta?
Não é preciso muito esforço para concluir que, ao menos para a vasta maioria das pessoas, não.
Isso cria um trágico dualismo para a ética: para balizar o que seria o melhor comportamento possível para cada situação, a razão parece ser bastante efetiva, mas, para que comportamentos individuais e padrões culturais mudem a partir da compreensão da validade de tal raciocínio, infelizmente, não.
Podemos entender tal dimensão trágica da existência humana em paralelismo com a noção de absurdo apresentada por Camus: para ele, a contradição entre nossa tentativa de racionalização da vida (nossa busca por certa ordem) e a aparente inexistência de sentido do Universo - esse rolo compressor de tempos, espaços e existências -, gera um absurdo inescapável. O absurdo seria, portanto, o laço entre nós e o mundo, de forma tão imponente, que é como se fôssemos estrangeiros em nosso próprio “lar”.
De forma semelhante, a tentativa de ordenação ética do comportamento humano por parcela dos membros da espécie, quando em contato com o modo de viver da maioria dos demais entes - que parecem apenas reproduzir, por inércia, os costumes estabelecidos - sem abertura para a ampliação e para o aprofundamento da moralidade habitual -, costumeiramente se torna um penoso exercício de contemplação do absurdo.
A alta capacidade potencial da mente humana, em conflito com a morosidade da inclinação para uma verdadeira atitude ética (para além da reprodução - quase obrigatória - do mínimo ético imposto pelos costumes e pelas leis, se muito), faz nascer um senso de absurdo talvez ainda maior do que aquele gerado pela contemplação do choque impiedoso entre galáxias ou do extermínio de espécies dada uma queda de asteroide ou mudanças climáticas naturais, haja vista que tais processos são consequências de fluxos mecânicos inconscientes, enquanto nós, humanos, temos o poder da reflexão e da opção.
Uma possibilidade de compreensão do trágico dualismo acima exposto é que a razão não seria o único motor para a ação digna. E isso é verdade, o que se demonstra pelo fato de que é possível fazer boas escolhas morais sem grandes reflexões. A sensibilidade pode bastar ou ser quase suficiente (faltando apenas um breve empurrão da razão: “se isso é ruim, se isso gera sofrimento, se isso é injusto, logo…”).
Mas, podemos conjecturar ainda além: seria suficiente, para que propostas como o veganismo sejam realidade, apenas a argumentação racional? Foi mesmo apenas a argumentação racional que os fez os veganos aderirem a tal prática?
Parece-me que, se fosse assim, todo mundo que ouve um bom divulgador do veganismo falar, se for capaz de um mínimo de raciocínio, deveria virar vegano. Mas a realidade é que muitas pessoas entendem os argumentos veganos e até os acham corretos, lógicos e arquitetados de forma coerente, mas não mudam suas práticas. Apenas guardam na mente aquilo que aprenderam ou esquecem.
Neste momento do texto, vale pedir que todo leitor vegano faça um esforço e se lembre do processo que o fez assumir tal compromisso ético. Mesmo que tenha sido exposto, ainda quando carnista, aos argumentos racionais veganos, o que foi realmente o ponto de virada? Foi a pura reflexão racional ou foi necessário certo sentimento para que houvesse o salto entre as ideias e a mudança das práticas?
Teria sido a compaixão pelos seres que sofrem o que impulsionou tal mudança de postura? Teria sido olhar no olho de uma vaca, ouvir os gritos de um porco, pensar na tortura do cárcere e senti-la como se fosse em si mesmo?
Teriam a razão e os argumentos éticos gerado certas contradições construtivas que despertaram certos sentimentos? Ou teria a sensibilidade desencadeado um senso de ojeriza ao horror que, depois, fora racionalizado? Ambos os caminhos podem ocorrer[1].
Mas isso ainda não explica o motivo pelo qual a vasta maioria das pessoas simplesmente não se importa em seguir contribuindo para o holocausto dos animais, mesmo quando sabem o que fazem e possuem as condições materiais para optar pelo veganismo.
Aqueles que são expostos ao terror gerado pelos humanos aos animais e nada fazem expõem mais uma dificuldade em compreender a razoabilidade da visão vegana ou uma falta de sensibilidade - ao menos para entes não humanos (especismo)?
Ainda, o que faz com que humanos que são racionais em outras dimensões da vida e/ou demonstram sensibilidade em outras situações (por exemplo, para sofrimentos humanos), prefiram se manter no carnismo?
Será que o fato de que o veganismo exige o abandono de certos hábitos que geram alguns prazeres sensoriais faz com que a adesão a ele seja bem mais rara do que a adesão a diversas outras causas (justas, mas que não exigem muito esforço de seus apoiadores)?
Se assim for, para além da razão e da sensibilidade, estaria, imperioso, o desejo? Seria o hedonismo a principal força condutora da humanidade?
Isso poderia ser compreensível, do ponto de vista da luta egoísta que embasa a evolução das espécies, mas é terrível para a esperança (tola?) de que nossa espécie possa fugir dos desígnios darwinianos e construir modos de viver mais dignos e justos para todos.
Todas as alternativas acima expostas podem ter seu grau de veracidade, assim como diversos outros fatores ainda não considerados. De toda forma, o que me resta, após mais de vinte e um anos como vegano, após dezenas de textos escritos sobre o tema e outras dezenas de palestras dadas, após assistir algum crescimento do veganismo, assim como alguma diminuição, após assistir pessoas se tornarem veganas para depois optarem por voltar tranquilamente a contribuir para a tortura de centenas de bilhões de animais por ano, mas ainda (e constantemente) consciente do grau do terror imposto desnecessariamente pela humanidade aos demais entes sencientes da Terra, resta-me apenas o lamento.
O aprimoramento das sensibilidades e das virtudes, tendo como aliada a razão, parece ainda ser um projeto que contraria tanto a normalidade da espécie humana, que, de certa forma, faz com que aqueles que se dedicam à tentativa de convencimento público sobre a necessidade de nosso aperfeiçoamento ético não pareçam muito diferentes de profetas amalucados pregando no deserto ou mesmo de “palestrantes” de coreto de praça: as pessoas passam, olham, riem ou amaldiçoam, e seguem suas vidas.
Tentar ordenar o absurdo seria ainda mais absurdo do que o absurdo estrutural?
De todo modo, repetindo o final de um outro texto, há valor em pensar que antes ser um tipo de João Batista (ainda que sem gafanhotos, mel e peles) clamando em vão no deserto pela retidão de caráter do que um hedonista convicto se refestelando com os pueris prazeres da existência enquanto defeca sobre as cabeças das vítimas de seus deleites… Ainda que a possibilidade da silenciosa e solitária contemplação do absurdo resplandeça perenemente.
[1] Vale dizer que eu me tornei vegetariano sem prévia reflexão, em um churrasco - em que fora para comer - ao olhar para uma grande churrasqueira e, sabe-se lá por qual motivo, como que enxergar os seres que estavam por trás da carne, seus sofrimentos e mortes. Apenas depois tomei contato com o veganismo e seus argumentos, passando tanto a divulgá-los quanto a tentar contribuir para seu aprimoramento - especialmente nos anos que ainda estavam sendo construídos no debate entre diferentes visões de mundo e estruturas conceituais.
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