A Bíblia e a paralisia moral em relação ao consumo de animais (2020)

  

Terão medo e pavor de vós todo animal da terra, toda ave do céu, tudo o que se move sobre a terra e todos os peixes do mar; nas vossas mãos são entregues” (Gênesis 9:2).

Analisarei abaixo a Bíblia, mas poderia ser algum outro livro ou código de conduta de qualquer outra tradição.

O fato que chama mais a atenção no Velho Testamento bíblico em relação aos animais é a centralidade dos sacrifícios na forma de culto a Deus ali legislada. A leitura dos capítulos veterotestamentários que regulamentam e incentivam tal prática são um mar de horrores, capazes de gerar enjoo em mentes eticamente mais centradas ou mesmo em sensibilidades minimamente apuradas.

Vejamos um exemplo, no livro de Levítico, capítulo 22: 17-33: “Disse o Senhor a Moisés: "Diga o seguinte a Arão e a seus filhos e a todos os israelitas: Se algum de vocês - seja israelita, seja estrangeiro residente em Israel -, apresentar uma oferta como holocausto ao Senhor - quer para cumprir voto, quer como oferta voluntária -, apresentará um macho sem defeito do rebanho, isto é, um boi, um carneiro ou um bode, a fim de que seja aceito em seu favor. Não tragam nenhum animal defeituoso, porque não será aceito em favor de vocês. Quando alguém trouxer um animal do gado ou do rebanho de ovelhas como oferta de comunhão para o Senhor, em cumprimento de voto ou como oferta voluntária, o animal, para ser aceitável, não poderá ter defeito nem mácula. Não ofereçam ao Senhor animal cego, aleijado, mutilado, ulceroso, cheio de feridas purulentas ou com fluxo. Não coloquem nenhum desses animais sobre o altar como oferta ao Senhor, preparada no fogo. Todavia, poderão apresentar como oferta voluntária um boi ou um carneiro ou um cabrito deformados ou atrofiados, mas no caso do cumprimento de voto não serão aceitos. Não poderão oferecer ao Senhor um animal cujos testículos estejam machucados, esmagados, despedaçados ou cortados. Não façam isso em sua própria terra nem aceitem animais como esses das mãos de um estrangeiro para oferecê-los como alimento do seu Deus. Não serão aceitos em favor de vocês, pois são deformados e apresentam defeitos". Disse ainda o Senhor a Moisés: "Quando nascer um bezerro, um cordeiro ou um cabrito, ficará sete dias com sua mãe. Do oitavo dia em diante será aceito como oferta ao Senhor preparada no fogo. Não matem uma vaca ou uma ovelha ou uma cabra e sua cria no mesmo dia. "Quando vocês oferecerem um sacrifício de gratidão ao Senhor, ofereçam-no de maneira que seja aceito em favor de vocês. Será comido naquele mesmo dia; não deixem nada até a manhã seguinte. Eu sou o Senhor. "Obedeçam aos meus mandamentos e ponham-nos em prática. Eu sou o Senhor. Não profanem o meu santo nome. Eu serei reconhecido como santo pelos israelitas. Eu sou o Senhor, eu os santifico, eu os tirei do Egito para ser o Deus de vocês. Eu sou o Senhor".

Outra prática dominante no Velho Testamento, além do sacrifício de animais, são as guerras, nas quais Deus ajuda o povo de Israel a liquidar os inimigos (ou usa os inimigos para dar lições a Israel, quando necessário). É comum que as ordens de Deus sejam para matar a tudo o que respira, como crianças, mulheres grávidas e animais - exceção feita ao comando para que guardem as meninas virgens para o usufruto dos soldados, em Números 31:17-18: Agora matem todos os meninos e todas as mulheres que não forem virgens. Mas deixem viver todas as meninas e as moças que forem virgens; elas pertencem a vocês.).

Em uma dessas pavorosas cenas de guerra (Josué 11: 5-11), descreve-se: "Todos esses reis se uniram e acamparam junto às águas de Merom, para lutar contra Israel. E o Senhor disse a Josué: "Não tenha medo deles, porque amanhã a esta hora os entregarei todos mortos a Israel. A você cabe cortar os tendões dos cavalos deles e queimar os seus carros". Josué e todo o seu exército os surpreenderam junto às águas de Merom e os atacaram, e o Senhor os entregou nas mãos de Israel, que os derrotou e os perseguiu até Sidom, a gran­de, até Misrefote-Maim e até o vale de Mispá, a leste. Eles os mataram sem deixar sobrevivente algum. Josué os tratou como o Senhor lhe tinha ordenado. Cortou os tendões dos seus cavalos e queimou os seus carros. Na mesma ocasião Josué voltou, conquistou Hazor e matou o seu rei à espada. (Hazor tinha sido a capital de todos esses reinos.). Matou à espada todos os que nela estavam. Exterminou-os totalmente, sem poupar nada que respirasse, e incendiou Hazor.".

Cortar os tendões de inocentes cavalos, seres sencientes, que sentem dor, entendem o que está ocorrendo e manifestam emoções condizentes. Eis os comando do ser que representa, nas tradições oriundas da Bíblia, o sumo bem, a fonte de toda compaixão e do mais puro e profundo amor.

Além das práticas do sacrifício de animais e da matança de animais em guerras, explicitamente cruéis (exemplos de práticas que só uma religião ou uma ideologia conseguem tornar normais), a bíblia também autoriza o consumo de animais ("... tudo o que se move sobre a terra, e todos os peixes do mar, nas vossas mãos são entregues. Tudo quanto se move, que é vivente, será para vosso mantimento" (Gênesis 9:2-3)) e legisla tanto sobre quais animais podem ser comidos quanto sobre como matá-los.

O consumo de animais tem passado por um rigoroso escrutínio ético nos dias atuais, sendo entendido como uma prática imoral, geradora de enorme quantidade de sofrimento a centenas de bilhões de animais terrestres e mais de um trilhão de animais aquáticos todos os anos, além de gerar uma série de impactos ambientais terríveis. Ou seja: a ética contemporânea, racionalmente e cientificamente embasada, choca com a liberação bíblica à criação, ao manuseio e à matança de animais, dada pelo próprio Deus.

O Novo Testamento, por sua vez, não possui um ímpeto tão legislativo sobre as relações entre humanos e animais, ainda que a fala de Jesus de que não teria vindo para negar a antiga lei, faça com que as mesmas, à rigor, persistam (Mateus, 5:17: “Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas cumprir”). Sendo assim, os absurdos do Velho Testamento ainda estariam em vigor.

Sobre a relação de Jesus com animais, alguns episódios de sua história chamam a atenção. Vejamos três:

O primeiro, relatado no evangelho de Marcos, capítulo 5, é a permissão de Jesus para que demônios saiam de uma pessoa, entrem em porcos e que estes caiam de um precipício: “Eles atravessaram o mar e foram para a região dos gerasenos. Quando Jesus desembarcou, um homem com um espírito imundo veio dos sepulcros ao seu encontro. Esse homem vivia nos sepulcros, e ninguém conseguia prendê-lo, nem mesmo com correntes; pois muitas vezes lhe haviam sido acorrentados pés e mãos, mas ele arrebentara as correntes e quebrara os ferros de seus pés. Ninguém era suficientemente forte para dominá-lo. Noite e dia ele andava gritando e cortando-se com pedras entre os sepulcros e nas colinas. Quando ele viu Jesus de longe, correu e prostrou-se diante dele, e gritou em alta voz: "Que queres comigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Rogo-te por Deus que não me atormentes! " Pois Jesus lhe tinha dito: "Saia deste homem, espírito imundo!”. Então Jesus lhe perguntou: "Qual é o seu nome?" "Meu nome é Legião", respondeu ele, "porque somos muitos". E implorava a Jesus, com insistência, que não os mandasse sair daquela região. Uma grande manada de porcos estava pastando numa colina próxima. Os demônios imploraram a Jesus: "Manda-nos para os porcos, para que entremos neles". Ele lhes deu permissão, e os espíritos imundos saíram e entraram nos porcos. A manada de cerca de dois mil porcos atirou-se precipício abaixo, em direção ao mar, e nele se afogou”. Jesus explicita a visão comum antropocêntrica de objetificação dos animais, disponíveis para qualquer uso humano.

Voltando à exploração mais comum da humanidade em relação aos animais, o consumo de seus corpos, o Novo Testamento  apresenta mais dois episódios. Um deles é quando, para alimentar o povo faminto, Jesus multiplica os peixes recentemente pescados por seus discípulos: “E Jesus, chamando os seus discípulos, disse: tenho compaixão da multidão, porque já está comigo há três dias, e não tem o que comer; e não quero despedi-la em jejum, para que não desfaleça no caminho. E os seus discípulos disseram-lhe: De onde nos viriam, num deserto, tantos pães, para saciar tal multidão? E Jesus disse-lhes: Quantos pães tendes? E eles disseram: Sete, e uns poucos de peixinhos. Então mandou à multidão que se assentasse no chão, e, tomando os sete pães e os peixes, e dando graças, partiu-os, e deu-os aos seus discípulos, e os discípulos à multidão. E todos comeram e se saciaram; e levantaram, do que sobejou, sete cestos cheios de pedaços. Ora, os que tinham comido eram quatro mil homens, além de mulheres e crianças”.

Por fim, após a morte por crucificação, Jesus, ressuscitado, visita seus companheiros: “E falando eles destas coisas, o mesmo Jesus se apresentou no meio deles, e disse-lhes: Paz seja convosco. E eles, espantados e atemorizados, pensavam que viam algum espírito. E ele lhes disse: por que estais perturbados, e por que sobem tais pensamentos aos vossos corações? Vede as minhas mãos e os meus pés, que sou eu mesmo; apalpai-me e vede, pois um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho. E, dizendo isto, mostrou-lhes as mãos e os pés. E, não o crendo eles ainda por causa da alegria, e estando maravilhados, disse-lhes: tendes aqui alguma coisa que comer? Então eles apresentaram-lhe parte de um peixe assado, e um favo de mel; o que ele tomou, e comeu diante deles” (Lucas 24:36-43).

Se Jesus (para os cristãos, o próprio Deus) dá ao povo peixes para que comam; se o próprio Deus, tanto no Velho quanto no Novo Testamentos, incentiva tal ato (comer animais); e se o próprio Deus ressuscitado, como esforço para provar que havia voltado dos mortos (o ato que provaria que suas promessas anteriores, em vida, não teriam sido apenas falas de um maluco), come um peixe (além de mel), a conclusão lógica seria que alguém se opor ao consumo de animais seria, obrigatoriamente, uma negação da vontade e das ações de Deus, ou, em última análise, negar o próprio Deus.

Como propor a correção moral da proposta vegana se ela contraria os humores e desejos do próprio criador do Universo e dono das chaves do paraíso e do inferno?

Pela lógica bíblica, por mais compassiva ou racional que seja a decisão de um vegano de se abster do consumo e da tortura de animais, ele estaria cometendo o pior dos pecados, negar Deus, e talvez possa esperar, como recompensa por seu “mau comportamento”, as dores e o ranger de dentes no inferno. Perverso, não?

Biblicamente falando, se levarmos realmente à sério o mandamento “não matarás” (quinto ou sexto, dependendo da tradição), estaríamos automaticamente negando o primeiro mandamento, que manda amar a Deus mais do que qualquer outra coisa. 

Já que crer em Deus é apoiar um ser que pregaria, em teoria, amor e compaixão, como este ser apoiou e incentivou assassinar animais, então um judeu ou um cristão poderia não ser compassivo defendendo a compaixão e não ser bondoso pregando a bondade. Tudo isso sob a chancela do próprio Deus. Os termos negam a realidade.

O uso da Bíblia como guia moral da humanidade gera, nesse aspecto, enormes entraves a nossa evolução moral.

O mesmo raciocínio poderia ser aplicado aos demais erros morais chancelados pela Bíblia. O que os diferencia é que esses outros relacionam-se a humanos e, nesses casos, mesmo os religiosos muitas vezes os escondem “embaixo do tapete" e simplesmente fingem que as regras ou sugestões não existem. Já em relação aos animais, sendo nossa cultura especista, os religiosos se sentem à vontade para usar a Bíblia como desculpa para atos de crueldade, não tirando de seu sentimento aquele senso vaidoso do caminho da santidade.

Comentários