Relativismo e absolutismo moral: fronteiras e meandros

  


Relativismo e absolutismo moral: fronteiras e meandros

 

Muito se fala atualmente sobre certo relativismo moral fortemente presente em nossa cultura, o que é um fato, considerando que há certa ideia vastamente difundida de que a verdade é sempre relativa, ou seja, haveria muitas verdades possíveis, não havendo como se estabelecer uma hierarquia entre elas, inclusive entre as verdades morais.

O mais óbvio é reconhecer que tal relativismo é uma expressão do individualismo, haja vista que os julgamentos são extremamente individualizados. Trata-se do pensamento “para mim, isso está certo”, ainda que não necessariamente os indivíduos consigam justificar o motivo pelo qual defendem esta ou aquela opinião. Cada sujeito julga ser correto aquilo que convém aos seus próprios interesses e desejos.

Por outro lado, há aqueles que apontam o dedo para o relativismo moral vigente. Usualmente, tais pessoas defendem códigos morais extremamente monolíticos e refratários a mudanças necessárias, seguindo-os mesmo quando sua aplicação pode gerar sofrimento ou injustiça. Trata-se de um absolutismo moral.

O mais óbvio é reconhecer que tal absolutismo é uma expressão do coletivismo, pois as pessoas seguem irrefletidamente e obrigatoriamente a moralidade previamente estipulada por um grupo, por uma instituição, por uma ideologia ou por uma tradição, sem margem para reflexões individuais, mesmo quando os comportamentos exigidos ou autorizados por tal moralidade são claramente imorais.

Contudo, há mais meandros.

relativismo, comumente associado ao individualismo, também possui sua forma coletivista, haja vista que as regras morais defendidas por coletividades como instituições ou tradições, costumam ser extremamente variáveis entre certos livros, certas passagens de certos livros, certas linhas de certas tradições, certos autores de certas linhas de certas tradições etc. Trata-se do pensamento “para nós, isso está certo”, ainda que não necessariamente tais coletividades consigam justificar o motivo pelo qual defendem esta ou aquela opinião. Cada grupo julga ser correto aquilo que convém aos seus próprios interesses e desejos, e impõe aos seus membros tal comportamento. Nesse ponto, o relativismo coletivista, dogmatizado-se, torna-se uma forma de absolutismo.

Já o absolutismo, comumente associado ao coletivismo, também possui sua forma individualista, o que ocorre quando as pessoas se apegam aos próprios julgamentos morais de forma absoluta, sem margem para alterações e aprimoramentos. Aqui, o relativismo individualista, dogmatizado-se, torna-se uma forma de absolutismo.

Ou seja, as posturas individualistas, coletivistas e relativistas tendem, igualmente, para o absolutismo, onde a margem para uma honesta reflexão moral sobre como evitar a geração de sofrimento desnecessário, de injustiça e de opressão comumente é extremamente limitada ou mesmo inexistente.

Assim sendo, o relativismo moral e o absolutismo moral coexistem em nossa cultura, e ambos são danosos para a reflexão de caráter ético. Mas isso significa que toda a relatividade e todo o viés absoluto da ética devem ser negados? Se assim fosse, restaria apenas o vazio. Contudo, é neste ponto que novos meandros podem nos levar para fronteiras mais saudáveis.

Se entendermos a ética como a tentativa de estipularmos padrões de comportamento capazes de diminuir o sofrimento gerado por nossos atos, ou mesmo, quando possível, o sofrimento não gerado por nossos próprios atos, temos um terreno fértil para reflexões racionais cujo objetivo é tentar definir a melhor opção de ação para cada caso, haja vista que

considerações morais se traduzem em fatos sobre como nossos pensamentos e ações afetam o bem-estar de criaturas conscientes, como nós mesmos. Se existem fatos a serem descobertos sobre o bem-estar de tais criaturas — e há —, então deve haver também respostas certas e erradas a perguntas de cunho moral. (HARRIS, 2003, p.66)

 

Em suma, se o objetivo da ética for diminuir o sofrimento gerado por cada ação, é possível que, com informações fidedignas sobre como cada ação pode impactar seres sencientes ou ambientes nos quais seres sencientes vivem e uma dose de raciocínio lógico, chegue-se às melhores opções morais. Esse resultado possui, então, uma nuance absoluta. Ele não depende da vontade de cada sujeito nem da tradição na qual cada pessoa nasceu ou se inseriu. Ele depende da reflexão racional almejando atos que sejam os menos violentos, destruidores e opressores possível.

Um exemplo: não importa se tradições culturais, religiosas e familiares apoiam o consumo de animais. Se temos certeza (e a ciência, assim como algumas antigas tradições, já as têm) que animais são sencientes, ou seja, são capazes de sentir e ter algum grau de consciência do mundo e de si mesmos - em suma, são capazes de sofrer e de experienciar diversas emoções -, a conclusão lógica é que não temos o direito de escravizá-los, torturá-los e assassiná-los. Assim, não há como se defender que comer animais ou usar suas secreções (leite), seus ovos, suas peles, seus corpos… possa ser moralmente defensável. Trata-se de uma conclusão óbvia, racional, derivada da percepção do mundo tal como ele é, e não da opinião de uma pessoa, de um livro, de um guru, de uma ideologia ou de uma tradição. Sendo assim, tal conclusão deve ter um viés absoluto, inclusive no sentido de que seria coerente almejar que ela deveria ser seguida por todos.

É desejável, portanto, que tenhamos um viés absoluto em conclusões éticas baseadas no mundo empírico e na lógica (é preciso que fronteiras sejam definidas), caso nosso objetivo seja diminuir o sofrimento gerado por nossos atos. Tal viés absoluto, porém, não é absolutista, já que não é determinado a priori, sendo imposto como obrigação, sem margem para alterações e melhoramentos.

Esse viés absoluto é derivado do estabelecimento de relações. Não é relativista, mas é relacional, e, portanto, relativo: relativo ao mundo empírico, à realidade do sofrimento e ao pensamento lógico que visa o estabelecimento da melhor ação possível para cada situação. É desejável, portanto, que tenhamos também um viés relativo em conclusões éticas baseadas no mundo empírico e na lógica (no interior das fronteiras, meandros devem ser navegados).

Vimos que o absolutismo e o relativismo, duas faces da irracionalidade, coexistem em nossa cultura (e que o relativismo facilmente se converte em absolutismo). O absolutismo tende a matar o relativo, e o relativismo tende a matar o absoluto. Contudo, precisamos de uma reflexão ética capaz de ser ao mesmo tempo relativa e absoluta: que tenha a sabedoria necessária para lidar com os meandros da existência sem, com isso, ultrapassar fronteiras morais obrigatórias.

É preciso que saibamos viver a coexistência do absoluto e do relativo, que não precisam anular um ao outro. Para isso, precisamos ser capazes de termos uma visão relacional, complexa, apta a compreender um mundo estruturado com base em coexistência e interdependência. A moral vive aí, nesses meandros, no interior de tais fronteiras: ela é fruto de relações, mas, ao conseguir estabelecer direções que gerem menos sofrimento, violência e opressão, ela deve ser entendida como algo a ser seguido por todos, mesmo que isso contrarie desejos pessoais, individuais, identitários, ideológicos, religiosos etc.

 Essa postura - a busca de uma ética racional - é capaz de gerar uma resposta única e perfeita para todas as questões? Não. A realidade é complexa, vivemos imersos em um mundo de sofrimentos, em uma natureza impiedosa, e, por vezes, todas as opções são ruins. Contudo, ela pode nos colocar no caminho mais certo possível e excluir posições nitidamente imorais, ainda que, no interior de tais limites, haja meandros, nuances e dubiedades.

O relativismo e o absolutismo possuem como frutos, costumeiramente, a violência, a opressão e a morte. A coexistência entre o absoluto e o relativo tende a uma moral mais saudável, pois está focada no mundo real, empírico, e na real vontade de diminuir o sofrimento, especialmente o gerado por atos intencionais. Eis algo pragmático e que podemos, como indivíduos e como sociedade, arquitetar.

 

Referência bibliográfica

HARRIS, Sam. A Paisagem Moral: como a ciência pode determinar os valores humanos. São Paulo, Companhia das Letras, 2013, 305p.

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