Sobre o problema de buscar princípios éticos em tradições e ideologias
Sobre o problema de buscar princípios éticos em tradições e ideologias *
Introdução
A moral vigente de uma sociedade costuma decorrer, principalmente, de três fontes: as tradições religiosas (derivadas de seus textos sagrados e de suas interpretações por autoridades reconhecidas), as tradições seculares (como os costumes e hábitos de certa comunidade) e, especialmente na modernidade, as ideologias políticas.
Tais fontes não anulam a existência de opções morais individuais ou desviantes, mas marcam o status quo geral de cada comunidade.
O objetivo do presente ensaio é refletir sobre tais fontes - especialmente sobre seus limites -, e apontar para a necessidade de transcendê-las.
1 - Tradições religiosas
Uma das fontes mais comuns para a constituição dos padrões morais de uma sociedade são os textos básicos das religiões, e é por eles que iniciaremos nossa investigação. Contudo, de antemão, é importante haver um cuidado sobre os limites de nossa análise: a argumentação aqui apresentada não tem como foco a crítica a uma ou outra religião específica ou mesmo à reflexão metafísica de forma geral. Não almejamos discutir a existência de Deus, a origem da consciência, da matéria, da energia ou das leis físicas, nem a validade de concepções materialistas e espiritualistas. Nossa análise se detém exclusivamente na investigação do talento de textos pretensamente sagrados em fornecer a melhor abordagem ética possível para nossos dias. Nossa preocupação é apenas ética, e não metafísica, o que tornaria o debate ainda mais complexo e nuançado.
Os textos religiosos costumeiramente apresentam uma série de princípios e regras que, apesar de serem moralmente questionáveis, formam seu código moral, pretensamente sagrado. Os exemplos apresentados a seguir nem de perto esgotam a miríade de exemplos de problemas morais defendidos por tais textos e pelas tradições que os sacralizam.
No caso de nossa sociedade, a formatação da moral a partir de textos religiosos dá-se especialmente pelas religiões oriundas diretamente da Bíblia, o judaísmo e o cristianismo, e é por tal livro que iniciaremos nossa investigação, averiguando o que ele nos diz sobre a nobre tarefa de educar:
Se alguém tiver um filho contumaz e rebelde, que não obedeça à voz de seu pai e à voz de sua mãe, e que, embora o castiguem, não lhes dê ouvidos, seu pai e sua mãe, pegando nele, o levarão aos anciãos da sua cidade, e à porta do seu lugar; e dirão aos anciãos da cidade: este nosso filho é contumaz e rebelde; não dá ouvidos à nossa voz; é comilão e beberrão. Então todos os homens da sua cidade o apedrejarão, até que morra; assim exterminarás o mal do meio de ti; (Dt, 21:18-21)
Ou ainda: “Aquele que poupa a vara aborrece a seu filho; mas quem o ama, a seu tempo o castiga”. (Pv, 13:24); “Não retires da criança a disciplina; porque, fustigando-a tu com a vara, nem por isso morrerá. Tu a fustigarás com a vara e livrarás a sua alma do Seol[1]”. (Pv, 23:13-14).
Considerando o que conhecemos atualmente sobre educação, pedagogia, psicologia ou mesmo direitos humanos, alguém em sã consciência defenderia que a melhor forma de educar crianças é batendo nelas com uma vara? Considerando o que sabemos atualmente sobre neurofisiologia, bioquímica e psicologia, alguém digno de atenção defenderia que a melhor forma de lidar com uma pessoa que possua vício em álcool ou inadequação social é apedrejando essa pessoa até a morte?
Acreditando que não é preciso responder às duas perguntas acima, prossigamos.
Temos, portanto, um exemplo de um código de conduta apresentado por um livro e chancelado por uma fé que determina que se não se seguir tal livro (que seria o desejo do próprio Criador do Universo), ganha-se o sofrimento eterno. Com tal poder de persuasão, esse código tem dominado a sociedade há milênios, tanto as partes do código que possuem verdades morais válidas, quanto as partes do código que são moralmente abjetas.
Esse código moral é fornecido como um pacote pronto contendo múltiplas regras a serem obedecidas mesmo quando são inadequadas (e, considerando que comumente elas não são resultado de reflexões racionais sistemáticas ancoradas na realidade do sofrimento e do bem-estar, há muitas regras inadequadas).
Vale dizer que, apesar de muitos seguidores do texto bíblico e das religiões dele derivadas ocultarem suas passagens mais violentas e não as seguirem como norma de comportamento, ainda assim elas existem (seriam vontades do mesmo Deus que expressou normas morais mais corretas) e, por vezes, são colocadas em prática. Vejamos um exemplo relacionado às passagens acima citadas:
Existem, por exemplo, 21 estados americanos que ainda permitem castigos físicos nas escolas. São lugares onde um professor pode, sob o amparo da lei, bater numa criança com uma palmatória — forte o suficiente para causar hematomas e até mesmo tirar sangue. Centenas de milhares de crianças são submetidas a esse tipo de violência todos os anos, quase exclusivamente nos estados do Sul. Desnecessário dizer, a razão por trás desse comportamento é explicitamente religiosa: porque o próprio Criador do Universo nos disse que aquele que poupa a vara odeia seu filho. (HARRIS, 2013, p.11).
É óbvio, portanto, que não há como retirarmos do texto bíblico, sem pesados filtros, nosso código moral. Contudo, como já dito, nosso objetivo é procurar uma maneira confiável de determinar padrões éticos, e é nesse escopo que, neste ensaio, dá-se a crítica às religiões e seus textos sagrados. Nosso foco não é a Bíblia, mas a moral. Assim sendo, vejamos um texto canônico de outra tradição religiosa, um pequeno sutta (discurso) presente no cânone original da tradição budista (os textos registrados na língua Páli no século 1 AEC). Ele é bastante representativo da postura indicada por Buda aos seus discípulos.
Diz a íntegra do sutta:
Assim ouvi. Em certa ocasião o Abençoado estava em Savatthi no Bosque de Jeta, no Parque de Anathapindika. Naquela ocasião o Venerável Sangamaji havia chegado em Savatthi para ver o Abençoado, e aquela que outrora fora esposa do contemplativo Sangamaji ouviu dizer "O Mestre Sangamaji chegou em Savatthi." Então, levando consigo seu filho pequeno, ela foi até o Bosque de Jeta. Então, ao chegar, ela foi até Venerável Sangamaji e disse "Cuide de mim, contemplativo, e deste pequeno filho também." Quando isto foi dito o Venerável Sangamaji permaneceu em silêncio. Uma segunda vez, ela disse ... Uma terceira vez, ela disse "Cuide de mim, contemplativo, e deste pequeno filho também." Quando isto foi dito, pela terceira vez, o Venerável Sangamaji permaneceu em silêncio. Então, o Venerável Sangamaji, não olhou para criança e tampouco direcionou ao menino uma palavra. Ao ver isso, a mulher pensou "Este contemplativo sequer se importa com o seu filho." Então, afastando-se e levando consigo a criança, a mulher partiu. O Abençoado então viu - através do olho divino, purificado e que sobrepuja o humano - a conduta indevida daquela que outrora fora esposa do contemplativo Sangamaji. Então, dando-se conta do significado disso, o Abençoado nessa ocasião exclamou: com a sua chegada, não houve deleite; com a sua partida, tampouco lamentação; vitorioso, livre dos grilhões: ele é aquele que eu chamo de Brâmane. (Sangamaji Sutta[2]).
Essa passagem expressa bem o problema de códigos de conduta advindos de religiões. Considerando que no Budismo original nada poderia ser mais importante do que a iluminação espiritual, e essa derivaria de uma espécie de desligamento em relação ao mundo material, qualquer coisa que pudesse atrapalhar tal processo deveria ser rejeitada, inclusive uma esposa e um filho pequeno passando necessidades. Quem, com o mínimo de respeito pelos seres vivos, não dirigido por alguma narrativa que coloca o objetivo da vida em algo que esteja para além da vida, ignoraria alguém próximo (no caso, a própria esposa, carregando o próprio filho), não lhe daria atenção, deixando-o falar sozinho, e abandonaria uma criança pequena e precisando de cuidados (faminta?), com a consciência tranquila, considerando que tais atos seriam os mais nobres possíveis?
Se optarmos por delinear nossa moralidade a partir da atenção à realidade do sofrimento e do bem-estar, ficará evidente a falibilidade moral de inúmeras posturas religiosas.
Parece óbvia a conclusão de que, mesmo que se possa retirar valorosas discussões filosóficas, psicológicas ou mesmo éticas da história do pensamento religioso - representado aqui pelo pensamento judaico, cristão e budista -, ainda assim, o fato de alguma orientação moral estar presente em algum dos textos básicos de tais religiões não faz com que, automaticamente, essa proposta seja moralmente aceitável, nem muito menos a melhor possível.
Ou seja, ainda que uma tradição religiosa possa ter visões de mundo sábias sobre diversos assuntos, isso não faz com que automaticamente ela seja uma fonte segura e absoluta para definirmos nosso melhor código moral.
Para comprovar melhor nosso argumento, vejamos mais um exemplo pertinente à ética em relação a outros humanos: o modo como essas tradições religiosas percebem as mulheres.
Em um dos registros canônicos do budismo, chamado de Gotamī Sutta[3], uma mulher (Gotamī) implora diversas vezes ao Buda para que ele a permita tornar-se parte de sua ordem monástica, até então apenas masculina, o que ele reiteradamente nega. Após um de seus discípulos mais próximos (Ananda) novamente insistir diversas vezes, ele permite, mas coloca uma série de regras como: “uma monja, mesmo que tenha sido ordenada há uma centena de anos, deverá se curvar a um monge que tenha se ordenado ainda hoje. Ela deverá [...] saudá-lo com as mãos unidas e observar uma etiqueta apropriada perto dele.” e “deste dia em diante é proibido para monjas que critiquem monges, mas não é proibido para monges que critiquem monjas” (Gotamī Sutta. Tradução nossa)[4]. Após aceitar as regras específicas para mulheres, Gotamī é aceita por Buda, que então profetiza:
Ananda, se as mulheres não tivessem ganho o direito de avançar da vida de leiga para a vida mendicante [monástica] no ensinamento e no treinamento proclamados pelo Realizado [Buda], a vida espiritual duraria longamente. O verdadeiro ensinamento permaneceria por milhares de anos. Mas como elas ganharam o direito de seguir adiante [tornarem-se monjas], agora a vida espiritual não durará muito. O verdadeiro ensinamento durará apenas quinhentos anos.
É como essas famílias com muitas mulheres e poucos homens. Elas são presas fáceis para bandidos e ladrões. Da mesma forma, a vida espiritual não durará muito com um ensinamento e treinamento no qual mulheres ganham o direito de avançarem.
[...]
É como um campo cheio de cana-de-açúcar. Uma vez que a doença chamada ´podridão-vermelha` ataca, ele não dura muito. Da mesma forma, a vida espiritual não durará muito com um ensinamento e treinamento no qual mulheres ganham o direito de avançarem. (Ibid. Tradução nossa)[5].
Se analisarmos a realidade de forma racional, que evidência teríamos que a presença de mulheres em uma organização seria um grave elemento de ruptura dessa organização, o que não aconteceria se ela fosse formada apenas por homens?
Há uma hipótese de que tal discurso tenha sido fabricado por monges após a morte de Buda por estarem incomodados com a possibilidade de uma ordem monástica feminina (ou seria essa hipótese que teria sido fabricada por monges contemporâneos por estarem incomodados com a possibilidade de que tais absurdos tenham sido dito pelo próprio Buda, o ser iluminado?). Contudo, sigamos nossa análise a partir do que diz o sutta: se, como creem os budistas, Buda seria um ser plenamente “iluminado”, “desperto”, mais sábio até que os “deuses”, logo, a sabedoria suprema passaria por colocar mulheres em um patamar social inferior ao dos homens. Como justificar isso moralmente?
A tradição bíblica caminha no mesmo sentido. No Velho Testamento, as mulheres, além de terem surgido como um complemento do homem, criado primeiro, são nitidamente classificadas como propriedade desses: “Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo” (Ex. 20:17)[6]. Além disso, as mulheres são comumente vistas, além de como seres inferiores, como passíveis de grande desconfiança: “Grandes são a cólera de uma mulher, sua audácia, sua desordem. Se a mulher tiver o mando, ela se erguerá contra o marido." (Eclo. 25:29-30); "Não entregues tua alma ao domínio de tua mulher, para que ela não usurpe tua autoridade e fiques humilhado" (Eclo. 9:2).
Já no Novo Testamento, entendido por muitos como um aprimoramento moral em relação ao Velho Testamento, a diferenciação entre homens e mulheres persiste (justiça seja feita, as passagens abaixo são atribuídas a Paulo de Tarso e não ao próprio Jesus):
As mulheres estejam caladas nas igrejas, porque lhes não é permitido falar; mas estejam sujeitas, como também ordena a lei. E, se querem aprender alguma coisa, interroguem em casa a seus próprios maridos; porque é indecente que as mulheres falem na igreja (1 Cor, 14:34-35).
As mulheres sejam submissas ao seu próprio marido, como ao Senhor; porque o marido é o cabeça da mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja, sendo este mesmo o salvador do corpo. Como, porém, a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo submissas ao seu marido (Ef, 5:22-24).
Refaçamos a pergunta realizada para o sutta budista: como justificar moralmente a inferioridade das mulheres em relação aos homens? Como justificar que as mulheres seriam apenas complementos dos homens, devendo permanecer caladas e submissas a eles?
É óbvia a inadequação moral do texto bíblico, bem como do cânone budista (e encontramos isso também em outras religiões) para lidar com diversos aspectos da realidade, como a existência de gêneros sexuais na espécie humana.
Se ampliarmos nossa análise para outras culturas religiosas, a lista de terrores morais contra humanos seria infindável. Teríamos que passar por práticas como discriminação de pessoas ao nascer (castas, por exemplo), xenofobia, machismo, racismo, homofobia, sacrifícios humanos, perseguição/assassinato de grupos humanos específicos (vide o caso do assassinato de albinos para a fabricação de poções por feiticeitos, a tortura e o abandono de crianças consideradas bruxas ou a guerra entre facções rivais de algumas religiões), automutilação, suicídio ritual, guerra contra infiéis, entre muitas outras práticas imorais, como o especismo e o sacrifício de animais.
A inadequação moral das religiões e de seus textos ultrapassam, portanto, as fronteiras das relações humanas, e envenenam, por exemplo, as possibilidades de aprimoramento das relações entre a humanidade e as demais espécies de animais.
Já possuímos conhecimento suficiente para termos certeza de que diversas espécies de animais são sencientes: possuem sensibilidade e consciência, e experimentam não apenas dor física, mas sofrimento psíquico, possuindo diversas emoções semelhantes às humanas. Sendo assim, cada vez mais se discute a necessidade de modificarmos diversos hábitos humanos e o modo como os animais são tratados. Trata-se de uma discussão de imenso valor ético, haja vista que diz respeito ao aprisionamento, tortura e morte de mais de um trilhão de seres anualmente, sem contar todos os que são afetados pela destruição ambiental gerada por atividades humanas.
Contudo, uma pessoa que tem em sua religião a verdade sobre o Universo e um guia para seu próprio comportamento, encontrará em seus textos sagrados passagens como esta, autorizando o consumo de animais:
E o temor de vós e o pavor de vós virão sobre todo o animal da terra, e sobre toda a ave dos céus; tudo o que se move sobre a terra, e todos os peixes do mar, nas vossas mãos são entregues. Tudo quanto se move, que é vivente, será para vosso mantimento. (Gn. 9:2-3).
Ou, esta, uma das muitas legislando sobre o sacrifício de animais:
Disse o Senhor a Moisés: "Diga o seguinte a Arão e a seus filhos e a todos os israelitas: Se algum de vocês - seja israelita, seja estrangeiro residente em Israel -, apresentar uma oferta como holocausto ao Senhor - quer para cumprir voto, quer como oferta voluntária -, apresentará um macho sem defeito do rebanho, isto é, um boi, um carneiro ou um bode, a fim de que seja aceito em seu favor. Não tragam nenhum animal defeituoso, porque não será aceito em favor de vocês. Quando alguém trouxer um animal do gado ou do rebanho de ovelhas como oferta de comunhão para o Senhor, em cumprimento de voto ou como oferta voluntária, o animal, para ser aceitável, não poderá ter defeito nem mácula. Não ofereçam ao Senhor animal cego, aleijado, mutilado, ulceroso, cheio de feridas purulentas ou com fluxo. Não coloquem nenhum desses animais sobre o altar como oferta ao Senhor, preparada no fogo. Todavia, poderão apresentar como oferta voluntária um boi ou um carneiro ou um cabrito deformados ou atrofiados, mas no caso do cumprimento de voto não serão aceitos. Não poderão oferecer ao Senhor um animal cujos testículos estejam machucados, esmagados, despedaçados ou cortados. Não façam isso em sua própria terra nem aceitem animais como esses das mãos de um estrangeiro para oferecê-los como alimento do seu Deus. Não serão aceitos em favor de vocês, pois são deformados e apresentam defeitos". Disse ainda o Senhor a Moisés: "Quando nascer um bezerro, um cordeiro ou um cabrito, ficará sete dias com sua mãe. Do oitavo dia em diante será aceito como oferta ao Senhor preparada no fogo. Não matem uma vaca ou uma ovelha ou uma cabra e sua cria no mesmo dia. "Quando vocês oferecerem um sacrifício de gratidão ao Senhor, ofereçam-no de maneira que seja aceito em favor de vocês. Será comido naquele mesmo dia; não deixem nada até a manhã seguinte. Eu sou o Senhor. "Obedeçam aos meus mandamentos e ponham-nos em prática. Eu sou o Senhor. Não profanem o meu santo nome. Eu serei reconhecido como santo pelos israelitas. Eu sou o Senhor, eu os santifico, eu os tirei do Egito para ser o Deus de vocês. Eu sou o Senhor (Lv. 22: 17-33).
Ou esta, um ato chocante de Jesus:
Eles atravessaram o mar e foram para a região dos gerasenos. Quando Jesus desembarcou, um homem com um espírito imundo veio dos sepulcros ao seu encontro. Esse homem vivia nos sepulcros, e ninguém conseguia prendê-lo, nem mesmo com correntes; pois muitas vezes lhe haviam sido acorrentados pés e mãos, mas ele arrebentara as correntes e quebrara os ferros de seus pés. Ninguém era suficientemente forte para dominá-lo. Noite e dia ele andava gritando e cortando-se com pedras entre os sepulcros e nas colinas. Quando ele viu Jesus de longe, correu e prostrou-se diante dele, e gritou em alta voz: "Que queres comigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Rogo-te por Deus que não me atormentes! " Pois Jesus lhe tinha dito: "Saia deste homem, espírito imundo!”. Então Jesus lhe perguntou: "Qual é o seu nome?" "Meu nome é Legião", respondeu ele, "porque somos muitos". E implorava a Jesus, com insistência, que não os mandasse sair daquela região. Uma grande manada de porcos estava pastando numa colina próxima. Os demônios imploraram a Jesus: "Manda-nos para os porcos, para que entremos neles". Ele lhes deu permissão, e os espíritos imundos saíram e entraram nos porcos. A manada de cerca de dois mil porcos atirou-se precipício abaixo, em direção ao mar, e nele se afogou. (Mc. 5:1-13)
E tal crítica, novamente, não se resume ao mundo bíblico. O budismo, recorrentemente associado como uma religião de grande compaixão, também não possui, ao menos em seus registros canônicos mais primitivos, uma visão eticamente coerente sobre comer animais. Vejamos uma instrução atribuída ao próprio Buda:
Existem três situações nas quais a carne não deve ser comida: quando for visto, ouvido ou suspeitado que o animal tenha sido sacrificado para o bhikkhu [monge]. Eu digo que carne não deve ser comida nessas três situações. Eu digo que há três situações nas quais carne pode ser comida: quando não for visto, ouvido ou suspeitado que o animal tenha sido sacrificado para o bhikkhu. Eu digo que carne pode ser comida nessas três situações. (Jivaka Sutta[7]).
Também na questão dos animais, portanto, as religiões são péssimas fontes de aprimoramento moral. Há poucas linhagens vegetarianas em algumas religiões, mas que, além de normalmente não derivarem suas regras de conduta de reflexões éticas coerentes, mas de uma mistura de visões particulares sobre saúde e espiritualidade, sempre permitem, incentivam ou demandam outras formas de exploração dos animais. É o caso do culto ao leite em linhagens hinduístas, como ocorre no movimento Hare Krishna, dada a permissão/incentivo de seu consumo pelo próprio deus Krishna.
2 - Tradições seculares
Ampliando a discussão para além das religiões, podemos constatar que as tradições seculares também não são fontes obrigatoriamente confiáveis para a ética, já que podem conservar todo tipo de comportamento imoral, gerando, como no caso das religiões, um fenômeno de natureza absurda, mas imensamente comum, no qual uma pessoa pode ser imoral em nome da defesa de certa moralidade (de certo código moral tradicional).
Incontáveis costumes infames compõem a normalidade cultural das inúmeras sociedades e comunidades existentes no mundo. Eles passam pela "propriedade sexual” de filhas por pais e padastros, por outras formas de estupro em família, pela perseguição/assassinato de grupos humanos especificos, pela amputação de pedaços dos dedos das mãos por mulheres da tribo Dani, na Indonésia, a cada vez que um membro da família morre, pelo canibalismo, pelo infanticídio, por diversas formas de escravidão, por rodeio, tourada, vaquejada e práticas similares, pelo domínio e assassinato de membros de outras espécies da natureza, entre muitos outros exemplos, como esse:
Existe na Albânia uma venerável tradição de vendeta chamada kanun: se um homem comete assassinato, a família de sua vítima pode retribuir matando qualquer um de seus parentes do sexo masculino. Se um rapaz dá o azar de ser filho ou irmão de um assassino, ele precisa passar a vida inteira se escondendo, abdicando assim de uma boa educação, de serviços de saúde adequados e dos prazeres de uma vida normal. Mesmo hoje em dia, inúmeros homens e meninos albaneses vivem como prisioneiros em seus próprios lares. (HARRIS, 2013, p.9).
O fato de que tal “venerável tradição de vendeta” seja um costume estabelecido em uma cultura, que faça parte de seu código moral tradicional, não faz desse costume algo moralmente aceitável. As tradições, portanto, podem ser grandes empecilhos para a evolução ética das sociedades humanas.
Assim sendo, há um grande problema quando certas doutrinas culturais julgam que, apenas pelo fato de um comportamento ser tradicional, ele deveria ganhar automaticamente o rótulo de válido, cuja preservação seria uma obrigação moral.
Esse fato coloca uma interrogação tanto em posturas conservadoras quanto em algumas posturas identitárias que associam de modo automático a manutenção de tradições com a excelência moral.
3 - Ideologias políticas
Além das tradições e religiões, outra fonte problemática, de enorme relevância, para a formatação de códigos morais, são as ideologias políticas. Não é nosso desejo aprofundar esse debate neste momento, mas vale questionar quantas pessoas foram mortas, escravizadas ou violentadas em nome de estados fortemente ideologizados, de esquerda ou de direita - fascistas, nazistas ou comunistas - apenas no século XX. A resposta quantitativa e, principalmente, as descrições dos horrores sistematicamente organizados em campos de concentração, gulags, holodomor ou paredões de fuzilamento, são mais do que suficientes para responder o quão confiável é deixar o código de conduta de uma sociedade nas mãos de ideologias políticas.
Visões conservadoras ou reacionárias costumeiramente recaem sobre os casos previamente analisados (tradições religiosas e/ou seculares) e visões progressistas não raramente apontam para práticas de moral duvidosa em nome da defesa cega e inegociável de uma visão de mundo hedonista na qual a manutenção dos prazeres e desejos individuais estaria acima de quaisquer considerações morais sobre o sofrimento e a insanidade gerados para obtê-los ou mantê-los.
Vale, ainda, considerar que:
As próprias ideologias políticas de esquerda e de direita tornaram-se religiões seculares que proporcionam às pessoas uma comunidade de irmãos com uma afinidade de ideias, um catecismo de crenças, uma demonologia populosa e uma confiança beatífica na virtude de sua causa. [...] A ideologia política prejudica a razão e a ciência. Ela enevoa o discernimento, inflama uma mentalidade tribal primitiva e desvia seus adeptos de uma compreensão mais sensata das maneiras de melhorar o mundo. (PINKER, 2018, p.54).
E, complementando, que:
A maneira como uma pessoa percebe o abismo entre fatos e valores parece influenciar sua visão a respeito de quase todos os temas relevantes para a sociedade.
[...]
Tal fratura em nosso pensamento tem consequências diferentes em cada extremo do espectro político: conservadores religiosos tendem a acreditar que existem respostas certas a questões sobre o sentido das coisas e a moralidade, mas só porque o Deus de Abraão assim determina. Eles admitem que fatos comuns possam ser descobertos por meio da investigação racional, mas acreditam que os valores têm de ser ditados por uma voz que emana dos céus. Crença literal em escrituras sagradas, intolerância à diversidade, desconfiança da ciência, desprezo pelas causas reais dos sofrimentos humano e animal – muito frequentemente é desse modo que a divisão entre fatos e valores se expressa na direita religiosa.
Os liberais seculares, por outro lado, tendem a imaginar que não existem respostas objetivas a questões morais. [...] o relativismo moral [...], a tolerância até mesmo à intolerância [...] são as consequências familiares da separação entre fatos e valores por parte da esquerda. (HARRIS, 2013, p.12-13).
Assim sendo, convém que se fuja tanto do absolutismo moral de posturas monolíticas (refratárias a aprimoramentos morais) quanto do relativismo moral de posturas que negam a centralidade da moral em nome da manutenção de desejos e prazeres.
Conclusão
Por tudo o que dissemos até o presente momento, é fácil concluir que é preciso negar a aceitação automática de regras morais trazidas por tradições, religiões e ideologias para que possamos almejar alcançar fundamentos sólidos para nossas decisões morais. Precisamos cunhar nossa moralidade, nossos valores, a partir dos fatos do mundo, e não de ilusões e narrativas.
Faz-se necessário, acreditamos, que possamos aprimorar nosso pensamento moral de forma racionalmente válida, ou seja, que possamos desenvolver uma espécie de raciocínio moral, de forma que nossos códigos morais não sejam entregues a nós prontos, como pacotes pré-fabricados por tradições, ideologias, textos “sagrados” ou quaisquer outras fontes de normas dogmaticamente impostas, dado que, quando isso acontece, as pessoas tornam-se impelidas a seguir tais códigos mesmo quando eles contrariam aquilo que poderia ser a melhor ação possível em cada situação.
Precisamos consolidar, portanto, uma moralidade racional, realizada a partir de fontes de informação confiáveis sobre os seres afetados por nossas ações, na qual cada ato possa ser analisado em nome da busca da opção que menos gere sofrimento e mais diminua sofrimentos já existentes ou inevitáveis.
Referências bibliográficas
HARRIS, Sam. A Paisagem Moral: como a ciência pode determinar os valores humanos. São Paulo, Companhia das Letras, 2013, 305p.
PINKER, Steven. O Novo Iluminismo: em defesa da razão, da ciência e do humanismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, 664p.
[1] Seol ou Sheol, na Bíblia, é o nome dado ao local onde seriam direcionados os espíritos dos mortos para punição e purificação.
[2] Sangamaji Sutta. Udana I.8. https://www.acessoaoinsight.net/sutta/UdI8.php
[3] Gotamī Sutta. Anguttara Nikaya VIII.51. https://suttacentral.net/an8.51/en/sujato
[4] Traduzido pelo autor de:
A nun, even if she has been ordained for a hundred years, should bow down to a monk who was ordained that very day. She should [...] greet him with joined palms, and observe proper etiquette toward him. [...]
[...]
From this day forth it is forbidden for nuns to criticize monks, but it is not forbidden for monks to criticize nuns.
[5] Traduzido pelo autor de:
Ānanda, if females had not gained the going forth from the lay life to homelessness in the teaching and training proclaimed by the Realized One, the spiritual life would have lasted long. The true teaching would have remained for a thousand years. But since they have gained the going forth, now the spiritual life will not last long. The true teaching will remain only five hundred years.
It’s like those families with many women and few men. They’re easy prey for bandits and thieves. In the same way, the spiritual life does not last long in a teaching and training where females gain the going forth.
[...]
It’s like a field full of sugar cane. Once the disease called ‘red rot’ attacks, it doesn’t last long. In the same way, the spiritual life does not last long in a teaching and training where females gain the going forth.
[6] Neste caso, além da diminuição das mulheres, justifica-se ainda a escravidão de humanos e de animais.
[7] Disponível em: https://www.acessoaoinsight.net/sutta/MN55.php
* Revisão de excerto cortado do texto final da monografia apresentada em 2021 para a obtenção do título de especialista em Ciência e Tecnologia pela UFABC sob o título "A contribuição das ciências para o aprimoramento ético da relação entre humanidade e natureza”.

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