Cosmologia budista, ecologia, política e ética: conexões e cuidados

 



Introdução: uma cosmologia centrada em três aspectos

Para pensar em transformações na maneira como experienciamos o mundo, almejando aprimoramentos no modo como vivemos e construímos nossos lugares, cabe pensar sobre quais características gostaríamos que configurassem nossa noção de mundo – quais aspectos cosmológicos gostaríamos de privilegiar. Para isso, cabe realizar exercícios de percepção, observação e imaginação e, ao mesmo tempo, aventurar-se em estudos de cosmologias diversas. O que se segue é um princípio de esforço em tal sentido.

Uma cosmologia que nos fornece alguns pressupostos cosmológicos importantes é a budista[1]. Nela, questões como a impermanência, a interdependência, a coexistência e a atenção ao sofrimento de todos os entes são fundamentais. Nos termos budistas, há três características inerentes a tudo o que existe: tudo é impermanente (anicca), tudo é insubstancial (anatta) e tudo é insatisfatório e carrega o sofrimento (dukkha). Analisemo-las:


Anicca

A impermanência é algo fácil de observar no mundo. Tudo se transforma a todo instante. Viver a vida como se tudo pudesse ser eterno e imutável é almejar um mundo inexistente. Logo, essa seria uma visão equivocada, baseada em uma expectativa originada na ignorância em relação à natureza dos fenômenos.

Viver tal ignorância seria, portanto, fonte constante de ilusão, perturbação e sofrimento para os indivíduos que a possuem, gerando, ainda, relações interpessoais e sociais igualmente perturbadas, opressoras e sofridas. 


Anatta, interdependência, coexistência e multiplicidade

A insubstancialidade é uma das marcas principais da visão de mundo budista. Na linhagem budista Theravada, praticada principalmente no Sudeste asiático e ancorada nos mais antigos registros dos discursos de Buda, a insubstancialidade vem da noção canônica de anatta, termo na língua Pali comumente traduzido como “não-eu”: tudo o que nos forma é carente de um eu, de um self, de substância perene.

Eis uma típica passagem do cânone budista em Pali, na qual podemos ler uma fala atribuída ao próprio Buda: “Bhikkhus [monges], vocês devem abandonar o desejo por tudo aquilo que é não-eu. E o que é não-eu? A forma é não-eu; vocês devem abandonar o desejo por ela. A sensação [é não-eu; vocês devem abandonar o desejo por ela]. A percepção [é não-eu; vocês devem abandonar o desejo por ela]. As formações [são não-eu; vocês devem abandonar o desejo por elas]. A consciência é não-eu; vocês devem abandonar o desejo por ela. Bhikkhus, vocês devem abandonar o desejo por tudo aquilo que é não-eu.” (Samyutta Nikaya, XXII.143[2]).

No Zen-budismo (mais característico do extremo oriente), muito se fala sobre a ideia do vazio (ainda que essa ideia também apareça nos ensinamentos do Budismo Theravada). Thich Nhat Hanh, o conhecido monge zen-budista vietnamita, falando sobre Avalokita, importante bodhisattva do budismo mahayana, reflete: Quando Avalokita diz que nossa folha de papel é vazia, ele quer dizer que ela é vazia de uma existência separada, independente. Ela não pode simplesmente existir por si mesma. Ela precisa ´interser` com os raios do Sol, com a nuvem, com a floresta, com o lenhador, com a mente e com tudo o mais. Ela é vazia de um ´self` separado.” (HANH, 2000, p.22). 

Nesse sentido, a natureza da realidade é vazia. Todos os fenômenos são, em realidade, vazios. A própria noção de entidade, portanto, deve ser questionada: há realmente entidades ou apenas fluxos impermanentes de processos[3]?

A conexão entre a insubstancialidade/vazio e a interdependência é nítida. Tudo o que existe só existe temporariamente e como parte de redes de conexões espaciais e temporais. Não há uma substância perene nos fenômenos.

Por causa dessa visão, que faz com que se viva o mundo como pura conexão, o “espaço” torna-se alvo de grande reverência: “uma das grandes contribuições do Zen para o mundo ocidental é a compreensão do espaço” (WATTS, 2009, p.50). “O intervalo entre as pessoas – entre as vidas – é que constitui o vínculo entre elas. Eis algo muito importante – a filosofia do espaço” (Ibid. p.57). 

É claro que se pode questionar a denominação de "espaço" apenas para o que está entre as pessoas e não também para as próprias pessoas, mas, independentemente desse modo de se expressar, o ponto é que a constituição da espacialidade de nossas vidas poderia ser fortemente afetada com essa mudança cosmológica.

Aquilo que para muitos pode ser apenas “aquilo que não é uma pessoa, uma coisa, um animal ou um objeto querido” é de central importância, pois estando atentos, percebemos que a separação entre tais “coisas” (ou melhor, entre tais eventos transitórios) é ilusória. Estão conectadas espacialmente. O espaço é sempre relação e une a tudo o que existe. Com isso em mente, não observamos duas pessoas (ou uma pessoa e uma árvore) e pensamos: “há dois objetos independentes”, mas vemos que há uma grande rede de interdependências internamente e externamente aos contornos que reconhecemos como os corpos dessas pessoas, árvores ou quaisquer fenômenos. As próprias noções de corpo, de individuo, de eu e de outro são questionadas por essa visão.

Podemos então entender que os lugares são momentos de redes de interdependências que transformam suas configurações internas incessantemente. E é nesses lugares que coexistimos. Somos esses lugares. Assim é nossa geografia.

A noção de Hanh de “interser” pode facilmente ser entendida como “interestar” (em línguas como Inglês e Francês, onde ser e estar são o mesmo verbo, não seria nem mesmo necessário afirmar isso). Somos estando, e estar é sempre fazer parte de redes de conexões. Não se pode estar sem estar junto com todas as outras coisas. Não há lugar na natureza para um total isolamento. O extremo egoísmo e ensimesmamento dos entes, profundamente arraigados em nossa cultura – em nossas cosmovisões hegemônicas – são completamente contrários aos princípios ecológicos da vida.

Os motivos pelos quais buscamos independência, posse e permanência, ou seja, o oposto da interdependência e da impermanência, aspectos fundantes da própria existência, são compreensíveis. A vida natural é cruel, penosa e cheia de riscos. Tentamos minimizar o caos natural por via da construção de ordenações que possuam algum grau de estabilidade e segurança. Contudo, tal esforço comumente resulta em uma espécie de alienação em relação ao que configura nossa existência neste planeta, gerando posturas tão possessivas e egoístas que aceitam a destruição de tudo e todos em nome da melhoria de algum conforto pessoal.

Assim sendo, cabe observar que faz-se necessário que os seres humanos percebam melhor aquilo que configura as bases da própria existência material e ecológica, tornando-se mais atentos para o mundo em que vivem. Por tal via, educando-se a atenção e contemplando-se o mundo realmente existente, pode-se almejar padrões cosmológicos que poderíamos considerar como uma caminho do meio entre o impiedoso caos da total impermanência e falta de controle e a destrutiva ordem da tentativa de se ter total controle sobre tudo e todos, mesmo que seja preciso destruir para controlar.


Uma nota sobre política

Pensar o mundo considerando a interdependência não representa uma defesa de algum modelo de sociedade coletivista, no qual pessoas e animais são diluídos em alguma forma de massa homogênea. Na citação de Hanh, acima replicada, a folha de papel, o Sol, o lenhador e a nuvem, apesar de “interserem", de não existirem por si mesmos, são, ao mesmo tempo, identificáveis. São ao mesmo tempo independentes e interdependentes (nossa mente deve ser capaz de lidar com tal complexidade, com aparentes contradições formais. Precisamos ser capazes de lidar com nuances e com meandros).

Essa noção é essencial para pensarmos sobre modelos de sociedade, sobre política, pois nossas formas de organização não devem ser nem individualistas nem coletivistas, haja vista que ambas são responsáveis por profundas opressões sobre os entes vivos e seus ambientes. Somos, ao mesmo tempo, indivíduos e coletivos, e é pela dificuldade em se lidar com a coexistência[4] de aparentes opostos que muitas de nossas ideias sobre o mundo, quando postas em prática, aumentam a dose de nossa tragédia.

Quando pensamos em política, devemos considerar tanto a organização da sociedade e suas relações ecológicas com toda a natureza, quanto nossos encontros diários, constantes, com todos e com tudo o que divide o mundo conosco. Ou seja: a política inclui tanto a existência de centros e periferias e o avanço das cidades sobre a floresta, quanto a incapacidade de pedestres dividirem uma mesma calçada sem conflitos por território.

Nossa espaço-temporalidade é fruto de encontros de trajetórias (nas palavras da geógrafa Doreen Massey), parte de redes de interdependências. Assim, uma questão de inestimável valor para pensarmos a existência humana é o desafio da coexistência na multiplicidade. Em suma, a política, pois o que é a política senão a arte de coexistir?

A política, portanto, deve configurar-se a partir de fundamentos ecológicos (o que está muito além da simples reprodução de discursos ambientalistas). A vida não existe sem multiplicidade e coexistência (e multiplicidade e coexistência, por sua vez, não existem se se oculta a multiplicidade de indivíduos que coexistem).

Necessitamos, portanto, de fundamentos cosmológicos arquitetados sobre a consciência da coexistência e da multiplicidade, para que geremos saudáveis realidades coletivas, assim como saudáveis concepções de individualidade.


Anicca e anatta sem dukkha podem levar a enganos morais

A observação atenta dos entes (no caso, agora, dos entes vivos), leva-nos a outro elemento fundamental em cosmovisões saudáveis: o foco no sofrimento. Dukkha, a terceira característica de tudo o que existe, segundo o ensinamento de Buda, significa exatamente isso: tudo é marcado pelo sofrimento, pela insatisfação, por uma sensação de que a vida está sempre fora do eixo.

É o foco no sofrimento que pode colocar nossa mente na direção correta. Se focamos a estruturação daquilo que concebemos por mundo apenas na interdependência, na coexistência e na impermanência, podemos facilmente formar uma visão de mundo ingênua na qual deveríamos simplesmente aceitar a lógica da natureza. Nesse caso, ao tentarmos perceber as coisas como realmente são (algo fundante, por exemplo, no budismo, ou, de forma mais ampla, em qualquer treinamento de nossa atenção), confundimos esse esforço com simplesmente aceitarmos as coisas como são. Esse é um enorme perigo e muitos devotos de filosofias do oriente caem nessa armadilha moral, anulando, por exemplo, o senso ético, por uma aceitação absoluta da impermanência (ok, tudo se acaba mesmo...), da interdependência (ok, dependemos uns dos outros para viver, é a teia alimentar, um come o outro mesmo...) ou da ideia de kamma/karma (ok, estão passando por isso porque faz parte de seu kamma, não há o que fazermos...).

Possivelmente, esse seja um dos motivos pelos quais a compaixão possua lugar central na doutrina budista (compaixão, bondade amorosa, alegria altruísta e equanimidade formam as Brahma Viharas, ou seja, as atitudes ou qualidades sublimes da mente que devem ser desenvolvidas por todo praticante/meditador). Sem o olhar compassivo, anicca e anatta facilmente convertem-se em justificativas pretensamente elegantes para nosso egoísmo (e isso acontece em parcela dos praticantes budistas).


Dukkha também pode levar a enganos morais

A percepção de dukkha, ou seja, de que a insatisfação e o sofrimento são inerentes à existência, também pode levar ao mesmo tipo de erro moral (ok, as coisas são assim mesmo, todos sofrem...), gerando alienação e passividade frente às injustiças do mundo ou mesmo frente ao sofrimento passível de ser diminuído ou extinto.

Contudo, ao mesmo tempo, é essa percepção que, se bem compreendida e praticada, pode ordenar nossa cosmovisão de maneira virtuosa, considerando-se que o centro da estruturação de nossa cosmovisão deve ser a ética, ou seja, a tentativa de diminuir ao máximo o sofrimento dos entes sencientes e, portanto, também o sofrimento que nós geramos a outros entes. Chamo tal esforço de “cosmologia eticocêntrica” - o estudo (logos) sobre a possibilidade de se arquitetar uma ordem (cosmo) centrada na ética.


Anicca, anatta e dukkha: aceitação e negação visando a sabedoria

Somos corporalmente naturais (impermanentes, coexistentes, interdependentes), mas, moralmente, muitas vezes precisamos negar a natureza em nós (nossa origem genética de luta pela auto-sobrevivência a qualquer custo).

Quando observamos a natureza, vemos que trata-se de uma enorme e terrível guerra por sobrevivência. Impermanência, na natureza, significa o perigo sempre presente da morte, das intempéries, da fuga de ser comido vivo por alguém.  Interdependência, na natureza, significa cadeia alimentar, ou seja, a constante luta para que um se alimente do outro. Contemplar e considerar a impermanência e a interdependência é importante para que não criemos cosmovisões que aumentem a violência no mundo, mas, ao mesmo tempo, é uma forma de entrarmos diretamente em contato com a violência inerente ao mundo e, daí, tentarmos diminuir tal violência em nós.

Eis, creio, um caminho para a sabedoria (em Pali, pañña, em sânscrito, prajna), considerando que a sabedoria, na cosmologia budista está diretamente ligada à capacidade de se entender a verdadeira natureza dos fenômenos (de tudo o que existe), profundamente marcada por anicca, anatta e dukkha, e viver tal compreensão profunda de forma compassiva, amistosa, amorosa e equânime.

A ética, portanto, não deixa de ser uma resistência contra a natureza - o que inclui dizer que trata-se também de uma resistência contra nossos impulsos mais naturais, os quais podemos observar por via da meditação, almejando alcançar transformações em nossos padrões mentais/de comportamento.

Se apenas deixássemos a natureza seguir seu curso em nós, como podemos ouvir em alguns discursos e filosofias, isso seria um convite à barbárie.

Ainda, comumente precisamos tentar brecar processos de destruição (impermanência) ou negar certas variações nefastas do comportamento humano (multiplicidade/diversidade) com vistas a fortalecer a coexistência (é preciso brecar certos comportamentos que coexistem conosco - em nós ou em outros - para que a coexistência possa ser respeitada).

Se considerássemos a diversidade como um valor inquestionável, ou seja, se tivéssemos que aceitar tudo o que existe indiscriminadamente, esse seria outro convite à barbárie. O esforço de bem agir, o esforço moral, passa obrigatoriamente por julgar a qualidade dos comportamentos de pessoas e grupos. Caso contrário, toda forma de opressão e geração de sofrimento deveria ser aceita em respeito à multiplicidade de posturas e culturas. Isso é inadmissível.

Nosso centro cosmológico, a ética, expressa-se, portanto, pela atenção constante ao sofrimento e sua onipresença. Dessa contemplação, pode surgir como norte para nossa ação no mundo a compaixão, ou seja, deixar que o sofrimento alheio seja também seu e trabalhar para diminuí-lo.


Conclusão

Muitas pessoas abraçam o budismo por razões ecológicas ou sociais, crendo que a observação da impermanência e da não-substancialidade gera automaticamente um comportamento sábio. Por um lado, deve-se respeitar tais dimensões da realidade para evitar certas violências, por outro lado, devemos perceber que tais dimensões são constantes fontes de sofrimento.

Isso significa que se não se internaliza a noção de dukkha, o culto à anicca (impermanência) e anatta (não-substancialidade) pode facilmente tornar-se apenas uma desculpa esfarrapada para o egoísmo: a aceitação plácida do mundo como ele é. Já a internalização da realidade de dukkha, pode ser um combustível para a compaixão. 

A compaixão pode mudar a maneira como vivemos e nos relacionamos conosco mesmos, com os demais seres - humanos e não humanos - e com o ambiente que abriga a todos.

Nada no mundo deve ser aceito de modo absoluto ou “em pacote", mas, com a habilidade de navegar pelos meandros dos corpos de ideias e cosmologias, devemos sempre nos aventurar. Essa busca nos enriquece e enriquece nosso próprio mundo, nosso próprio cosmo. Com os devidos cuidados e meandros, a cosmologia budista pode nos fornecer, como visto, riquíssimos pressupostos para ordenarmos o modo como percebemos o mundo e o organizamos mentalmente, ou seja, riquíssimos pressupostos para aprimorarmos eticamente nossas cosmovisões.


Notas de rodapé
[1] Cabe aqui o esclarecimento de que não é proposta deste ensaio defender a prática de alguma religião. O interesse está apenas em analisar a importância de certos aspectos cosmológicos da cultura budista, sem o questionamento do conjunto doutrinal por inteiro.

[2]  Disponível em: http://acessoaoinsight.net/sutta/SNXXII.143.php.

[3] Durante este texto usa-se o termo “entes” para se referir às pessoas, animais ou demais membros da natureza. É uma opção para não usar o termo “seres”, mas o particípio, que permite entendê-los como processos em acontecimento. Ainda que a ideia de entidades possua semelhança com a de ente, é preciso tomar cuidado para não associar a este ente processual aqui defendido uma ideia de entidade com definições estáticas ou com substancialidade perene.

[4] A noção de coexistência, do ponto de vista ético, é até mais importante do que a de interdependência (ainda que ela seja de extrema relevância), pois é preciso que respeitemos aos diversos entes (aos diversos processos) não apenas porque interdependemos, mas “simplesmente” porque existem e formamos, juntos, este mundo.

Referências bibliográficas

HANH, Thich Nhat. O coração da compreensão: comentários ao Sutra do coração Prajnaparamita Sutra. Porto Alegre: Bodigaya, 2000.


MASSEY, Doreen. Pelo Espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.


WATTS, Allan. O que é Zen? Campinas: Verus, 2009.

Dennis Zagha Bluwol
Abril 2022
Revisão de ensaio publicado em 2020

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