Novas acusações: veganismo é escravagista, além de comunista e burguês (2021)

Diversos são os argumentos pretensamente argutos contra o veganismo. Originam-se em toda a gama de palpiteiros despreparados, figuras hegemônicas em todo o espectro de nossa jogatina politiqueira e de nossas bizarrices narrativas, sempre vestidos com mantos de ilusória sabedoria e capacidade para opinar sobre qualquer assunto – leia-se “lacração midiática”.

Ouvi duas vezes nesta última semana (de um youtuber relativamente famoso entre o público da nova direita terraplanista – não se trata, nesse caso, de uma adjetivação vazia: ele realmente o é – e de um biólogo com carreira na mídia) o argumento de que o veganismo seria uma forma de escravização da humanidade.

O centro do argumento é que poder escolher o que comer seria algo básico para a liberdade humana. Sendo assim, a tentativa de barrar parte das opções do menu seria uma castração de liberdade e, portanto, uma forma de escravidão.

No espírito dessa acusação está a noção em voga em parte da sociedade contemporânea de que há um plano global de dominação comunista em curso e que o veganismo (assim como o distanciamento social e o uso de máscaras para a contenção da COVID-19, por exemplo) seria um dos aspectos de tal plano, limitando a liberdade humana e contribuindo para a destruição da civilização ocidental por via da oposição à autorização divina/bíblica para o consumo de animais e de certo culto pagão à natureza, instituindo-se uma forma de  divinização de animais que seria, em realidade, uma subtração do valor da humanidade e sua imagem e semelhança de Deus.

O veganismo, nesse caso, por mais bizarra que esta afirmação seja, seria apenas uma ferramenta a serviço da destruição da civilização ocidental e de suas bases judaicas e cristãs, sendo que tal destruição seria, portanto, a verdadeira intenção, o verdadeiro projeto, que usaria o veganismo como uma de suas máscaras: uma máscara fofa para ocultar um plano demoníaco.

Ainda que a crítica a regimes autoritários e suas engenharias sociais deva ser feita, associar tais práticas ao coração da proposta ética do veganismo representa uma mistura de presença quase obrigatória nos debates contemporâneos sobre qualquer assunto: a mistura entre ignorância e mau-caratismo.

É válido e esperado que as pessoas lutem por suas liberdades e contra culturas ou governos opressores e com tendências autoritárias, independentemente da vertente política que estes governos e culturas defendam. Contudo, nem tudo o que nos limita a liberdade é uma forma de tirania. Há sentido em ter-se total liberdade de escolha em questões nas quais violências e opressões crudelíssimas estão em jogo? Alguém clamaria por liberdade de escolha para matar, torturar, estuprar ou escravizar um ser humano? Então por que assim seria com não humanos sencientes?

O regime no qual nada é proibido chama-se tirania (apesar de tudo ser permitido apenas para os donos do poder). Na democracia, visando o bem comum, nem tudo é permitido.

Sendo assim, faz-se necessário que certos comportamentos sejam limitados, visando também o bem dos animais não-humanos. Animais são capazes de sofrer. Possuem sensibilidade e consciência. Isso inclui emoções, memória, linguagem e algum grau de entendimento do mundo ao redor. Não é preciso que possuam a mesma consciência que humanos possuem para que sejam respeitados em aspectos básicos de suas dignidades, como não serem violentados, presos, escravizados ou assassinados. A lógica é básica assim. Não há necessidade de grandes nós argumentativos.

Mas é a natureza!” Bradam alguns descobridores da América em suas arrogantes tentativas de provar ao público que veganos são estúpidos ao ponto de não olharem o mundo ao redor (OK, vários são, reconheçamos). Assim o fez o biólogo midiático que acusou o veganismo de impor uma opressão à liberdade de escolha do alimento.

Sim, a natureza é bruta, impiedosa, trágica. Os animais se devoram, se matam. A lógica da vida é a morte alheia. Mesmo os processos naturais, como os tectônicos ou climáticos, são geradores de imenso sofrimento aos animais e de incomensurável mortalidade tanto para os animais como para outras formas de vida do planeta, incapazes de sofrer mas capazes de morrer.

O veganismo não é, ou não deveria ser, o resultado de uma visão infantil sobre uma natureza amorosa e harmônica (acusação também feita na mesma entrevista do biólogo acima referido e comumente repetida por opositores do veganismo, como certo filósofo pop). O veganismo, assim como toda tomada de consciência ética, é uma oposição aos desígnios mais primitivos de nossa natureza animal. Ética é uma negação da natureza. Civilizar-se passa por limitar nossos ímpetos de sanarmos todo tipo de desejo ou necessidade fazendo uso de qualquer meio possível, incluindo morte, estupro ou escravidão.

Opor-se ao veganismo em nome da defesa de que deveríamos seguir a lógica da natureza é defender a liberdade para prender, estuprar ou assassinar seres humanos. Não há coerência neste argumento.

Enfim, a proposta vegana, se bem entendida, não é nem um culto à natureza nem uma máscara fofa de um comunismo globalista. Basta perguntar-se: não escravizar, não estuprar ou não assassinar é de esquerda ou de direita? Da mesma forma que a pergunta não faz sentido para humanos, não faz sentido para animais.

Vale a observação de que extremistas de direita e de esquerda assumiriam que violências terríveis poderiam se justificar em nome de suas engenharias sociais. Mas extremistas não agem de modo razoável, e o veganismo é o resultado de um pensamento extremamente razoável, racional e compassivo. O veganismo é radical no entendimento da ética, mas não é extremista. A não ser que você queira considerar alguém que nunca dá uma assassinadinha nem um faz um estuprinho como um extremista.

Sobre ser compassivo, vale outra observação: tanto religiosos, de esquerda ou de direita, quanto revolucionários e ativistas políticos, também de esquerda ou de direita, outorgam a si mesmos a identidade de serem compassivos. A compaixão é um componente essencial das grandes religiões e nutre os desejos de justiça social dos revolucionários. Mas, na prática, a postura de compaixão em relação aos animais e a oposição à escravização e opressão dos mesmos é rejeitada e achincalhada por parte substancial dos ativistas políticos e dos religiosos. O que é fato e o que é apenas discurso nessas pessoas?

Sim, não só a direita apedreja o veganismo como se fosse um truque globalista e comunista. A esquerda recorrentemente apedreja o veganismo como se ele fosse um discurso burguês, uma moda de elite, uma máscara fofa para opressores incorrigíveis, que ofusca a verdadeira luta contra a opressão, que é apenas de humanos contra humanos.

Nota: é impressionante como a extrema esquerda e a extrema direita tantas vezes se assemelham em suas visões e propostas.

Nesta mesma última semana, na qual ouvi as duas falas às quais me referi anteriormente, assisti também uma fala de um líder de um partido político de extrema esquerda criticando uma fala desastrosa e absurda de uma famosa apresentadora de televisão sobre substituir os animais em testes de medicamentos por presidiários. Ele não apenas criticou a ideia absurda da apresentadora, mas fez críticas sarcástica a ela e ao veganismo, considerando que “ultimamente ela está se adaptando a este padrão civilizatório: defesa dos animais, ela mesma declarou que ela é vegana (...). Então ela é uma neocivilizada.”. Disse ainda que a apresentadora falou algo interessante para se pensar no “verdadeiro conteúdo de certas ideias", pois a substituição de animais por humanos em testes seria o “retrato da burguesia civilizada”. O veganismo seria uma das práticas dessa falsa civilidade.

Sobre a análise do militante político, vale pensar: pegar uma fala ou comportamento de alguém que defende uma causa e interpretá-los como se definissem a proposta de fundo de tal causa é, no mínimo, injusto, se não for mal intencionado. Aposto que o mesmo cidadão se incomodaria se o caso fosse alguém de direita, sem conhecimento dos escritos e ações de pessoas como Marx, Engels, Trotsky, Lênin ou dos grandes exemplos de geração de libertação e justiça social da espécie humana, como Stalin, Pol Pot e Mao Tse Tung (essa foi a minha vez de ser sarcástico), tecendo críticas enérgicas e sarcástica ao comunismo baseando-se em alguma fala de algum estudante de primeiro ano de sociologia falando groselhas sobre o comunismo em seu canal do YouTube.

Em suma: ética básica não tem orientação política. O veganismo faz parte daquele mínimo ético necessário e daquela lógica básica nas ações que deveríamos, de bom grado, almejar como sociedade, como civilização.

Transformar uma postura abolicionista – veganismo - em uma causa escravagista ou opressora é mais um exemplo da mistura entre estupidez, ignorância e mau-caratismo que define grande parte dos tresloucados túneis de realidade atualmente hegemônicos. O surrealismo venceu, mas a razão básica e o comportamento minimamente decente afrontam todo o espectro de titereiros em ação.

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