Cosmologia Eticocêntrica: uma proposta de superação das ideologias




Cosmologia Eticocêntrica: uma proposta de superação das ideologias

Introdução

O presente ensaio apresenta uma proposta sobre como poderíamos ordenar a sociedade, suas instituições básicas e a ação humana de forma que o mundo vivido por cada indivíduo, e, portanto, a sociedade por eles criada, tornem-se mais harmônicos, ordenados e virtuosos: mais cosmo e menos caos. Ou seja, trata-se do estudo (da busca por fundamentos) - logos - sobre a possibilidade de existência de certa ordenação - cosmo - para a forma como vivemos o mundo - uma cosmologia.

O cosmo - a ordem - aqui proposto é:

a) Racional, pois, mesmo ciente dos possíveis limites da racionalização da existência, defendo a ideia de que o uso da razão, aliado a verdadeiros interesses éticos, pode afastar diversas narrativas e ideologias perniciosas que tornam o mundo humano absurdamente pior do que ele poderia vir a ser.

b) Eticocêntrico, pois as instâncias da vida humana centrais para a arquitetura de nossa coexistência (epistemologia, direito, política e economia) são entendidas estando em função da ética ou sendo dela derivadas.

 Assim sendo, podemos resumir a proposta aqui defendida como a tentativa de consolidação de uma cosmologia eticocêntrica.

Como uma ordem racional e atenta à realidade empírica do mundo, a cosmologia eticocêntrica tende a superar a tragédia criada por ideologias e narrativas políticas/econômicas ou culturalmente estabelecidas pelas tradições.

Visando a consolidação de tal ordem - de tal cosmo -  proponho a necessidade de consideração de uma certa hierarquia. A ideia é que ela poderia ordenar o modo como percebemos o mundo e balizar o modo como organizamos a sociedade, de forma a atingirmos nossos objetivos éticos.

Essa hierarquia ordena-se da seguinte forma:

  1. Epistemologia adequada;
  2. Ética racionalmente arquitetada;
  3. Direito eticamente embasado;
  4. Política subalterna ao direito e à ética;
  5. Economia como troca enriquecedora;
  6. Estética como busca da virtude.

Definamos brevemente cada passo dessa ordem:

Epistemologia adequada

O centro da cosmovisão aqui proposta é a ética. Ainda que tal afirmação pareça trazer uma afirmação de simples compreensão, ela, em realidade, abre um campo de enormes problemas, pois é preciso se definir como podemos refletir a ética eficazmente, de forma que possamos buscar por padrões éticos válidos, acreditando-se que, se não há métodos infalíveis para a compreensão do mundo, há, ao menos, direções coerentes a serem seguidas.

Assim sendo, a ordenação de mundo deve iniciar-se com uma epistemologia adequada, ou seja, com formas adequadas de conhecer o mundo sem que se confunda o que o mundo realmente é com imagens fantasiosas presentes na mente daqueles que o percebem. Esta etapa possui dois aspectos principais:

 a) O desenvolvimento da habilidade de perceber o mundo com o mínimo de interferência de conceitos previamente existentes na mente. Isso equivale ao desenvolvimento da contemplação, da atenção e da concentração.

b) Organização e filtragem dos dados percebidos do mundo de forma lógica, coerente e passível de testes.

 Em suma, a busca aqui proposta é que estejamos realmente concentrados e atentos aos fatos, colorindo-os o mínimo possível com as cores de nossa própria mente, e filtrando e organizando os dados percebidos e apreendidos da forma mais lógica possível, utilizando, para isso, pensamento complexo e relacional.

Toda a cosmovisão embutida na hierarquia aqui apresentada parte daí, tentando evitar qualquer fantasia ou gosto pessoal. Isso é vital, especialmente se considerarmos que o centro da proposta é a ética (e, portanto, a diminuição ou erradicação de geração de sofrimento), pois, para que se possa saber a melhor forma de tratar algum ser, é preciso que se saiba quem ele é e quais são suas características da forma mais condizente com sua realidade material. 

Ética racionalmente arquitetada

O segundo passo de nossa cosmologia (de nosso método para a organização de uma cosmovisão saudável) é justamente a ética, ou seja, as decisões sobre como tratar o mundo percebido de forma a gerar o menor impacto negativo possível e, quando convier e for possível, aumentar nosso impacto positivo sobre ele.

A ética deve ser racionalmente investigada, ou seja, devemos  levar em conta as percepções obtidas do modo descrito no item anterior e, por via da razão, tentar estipular a correção ou incorreção de um ato visando o maior respeito possível aos afetados por ele, o que inclui diminuir ao máximo o sofrimento gerado por nossos atos.

A ética deve ser o centro da cosmovisão de um indivíduo e, por extensão, de uma sociedade. Ela é o centro pois é justamente a mediação entre a percepção honesta do mundo vivido/dos seres que o compõem e o estabelecimento de todas as práticas humanas sobre tal mundo. Tais práticas constituem os próximos passos da hierarquia aqui apresentada.

Além de balizar os próximos passos, a ética também retroalimenta o passo anterior, já que as próprias formas de observar o mundo e organizar o aprendizado sobre ele (por exemplo, pelas ciências), devem ser eticamente limitadas. 

Direito eticamente embasado

O terceiro passo é o direito. O direito, no âmbito da hierarquia aqui apresentada, nada mais é do que a consolidação da ética racionalmente embasada na forma de leis.

A ética resulta, assim, nas normas de uma coletividade. Dito de outra forma, as normas devem sempre ser consequências de conclusões éticas, e estas, por sua vez, como já exposto, ancoradas no mundo concretamente existente filtrado mentalmente de forma lógica. 

Política subalterna ao direito e à ética

A partir do direito, ou, melhor dizendo, subalterna ao direito, vem a política, ou seja, as definições e práticas que visam facilitar nossa coexistência. A política deve sujeitar-se completamente às normas estipuladas (direito) sob o domínio da ética racionalmente embasada.

Tal proposta independe do tipo de sociedade que defendamos. Nossa organização social sempre deve ser limitada pelas leis eticamente formuladas, havendo ou não governo, havendo ou não estado, sendo a economia mais ou menos liberal. Nem governos nem outros modos de organização coletiva podem estar acima dos bons princípios éticos, sob o risco de tornarem-se rolos compressores geradores de uma enorme gama de opressões e sofrimentos.

Economia como troca enriquecedora

Depois da política vem a economia, ou seja,  a produção e troca de nossas necessidades. A economia está abaixo da política no método aqui apresentado não pela defesa de uma economia centralizada pelo Estado ou de alianças e conchavos entre políticos profissionais e grupos econômicos (uma de nossas chagas nacionais), mas porque a produção e a troca devem ser limitadas pelas fronteiras éticas antes estipuladas, e é a política, utilizando-se do direito, quem poderia exercer tais limites.

Trocas econômicas podem melhorar a qualidade de vida de muitas pessoas e assegurar a sobrevivência de pessoas e comunidades, mas devem ser sempre subalternas à ética.

Vale sublinhar que, justamente pelo fato de a economia ser subalterna à ética,  a produção e a troca de nossas necessidades não deve ser confundida com a defesa de um mundo no qual o capital torna-se um deus e seus adoradores aceitam tudo fazer para obtê-lo e louvá-lo, como títeres moralmente cegos, ou seja, passando por cima de princípios éticos e ecológicos para obter mais capital a qualquer custo.

Economia é, simplesmente, produzir e trocar, o que faz com que as pessoas possam criar o que lhes é de seus interesses e trocar (mediante dinheiro, se for o caso) por algo que necessitem. Isso faz com que muitas pessoas possam melhorar suas qualidades de vida, desde que as trocas não sejam dominadas por gigantes monstros devoradores de capital ou servos do deus capital a escravizar ou explorar a todos e a todo o planeta.

O problema da economia de mercado ora vigente não é a troca por si mesma, mas a imoralidade gritante de muitos de seus operadores.

Estética como busca da virtude

Para além da hierarquia “ética - direito – política – economia” acima exposta, é salutar desejar que as demais instâncias de nossa vida prática também derivem da ética.

Como exemplo, é possível citar a estética. Para além da arte, que é o que vem à nossa mente em primeiro lugar ao pensarmos nesse termo, há uma dimensão estética em nosso cotidiano, em nossas relações de coexistência. Vale retomar, nesse quesito, a ideia de beleza como virtude e revalorar a ideia de harmonia. São valores estéticos que respondem às demandas éticas em um mundo como o nosso, cujas presenças da perturbação e do sofrimento são dominantes.

Contudo, isto não significa que a arte deva ser apagada. O interesse deste ensaio limita-se ao modo como nossa organização social é arquitetada. Não estamos analisando todas as dimensões da existência humana. A arte tem seus próprios métodos, que podem se dar o luxo de serem incoerentes, absurdos, ilógicos, e tem como marca a criação de fantasias. A criação de fantasias pela arte é parte fundamental da experiência humana e assim deve continuar a ser. O problema reside quando sistemas morais derivam do absurdo, das fantasias pessoais ou do caos. Aí, o convite à barbárie está feito.

Conclusão

O que foi apresentado acima é apenas um mapa geral. Cada um de seus passos exige desmembramento e aprofundamento. A vivência desse cosmo nas diversas situações de nossa vida, demanda atenção, pensamento e alteração de práticas consolidadas. Em linhas muito sintéticas, apresentou-se uma proposta de caminho para que possamos estruturar mentalmente o modo como percebemos, modificamos e organizamos o mundo em que vivemos, com especial atenção para a possibilidade de decidirmos quais são as melhores formas de nele agirmos.

Perceba que a cada passo desse caminho o mundo humano torna-se mais  organizado logicamente e eticamente: torna-se mais cosmo e menos caos. Assim sendo, é possível dizer que trata-se de uma investigação de caráter cosmológico -  a formatação de uma cosmologia eticocêntrica, na qual cada passo do caminho proposto avança na direção da possibilidade de coexistirmos de modo mais digno, justo e virtuoso.

A cosmologia eticocêntrica, portanto, é uma tentativa de resposta a um mundo dominado por ideologias fantasiosas e binarismos falaciosos, é um apelo à razoabilidade e à virtude em meio a um oceano de insanidades que permeia a maioria dos debates sobre a maioria dos assuntos, haja vista que o mundo contemporâneo está repleto de tresloucados titereiros das mais variadas matizes.

A cosmologia é um clamor pela razoabilidade e pela prudência. Razão e prudência cortam as cordas e desempoderam titereiros.

Vale a ressalva de que estou consciente de que modelos teóricos que visam domar a realidade não funcionam e, quando tentam se impor, costumam gerar desgraça. O que apresentei acima não pretende ter esse papel, haja vista que todos os passos descritos já existem na estrutura básica de nossa sociedade. O que se almeja é a possibilidade de mudanças na maneira como as pessoas vivem tal estrutura. Isso porque a proposta é de uma centralidade da ética, algo que ainda estamos longe de alcançar.

Se conseguiremos, como sociedade, nos mudar a tal ponto, contrariando fortes aspectos de nossa própria natureza, não há como responder, mas, considerando que, neste mundo, não há perfeição possível, mas sim processos complexos de aprimoramento, creio que a hierarquização aqui proposta para as dimensões que já estruturam nossa vida merece ser considerada.

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