Sobre o conflito entre a ética e a natureza e a emergência de uma cosmologia compassiva e vegana
SOBRE O CONFLITO ENTRE A ÉTICA E A NATUREZA E A EMERGÊNCIA DE UMA COSMOLOGIA COMPASSIVA E VEGANA
Olhando com desencanto para a natureza
Abro a porta de casa pela manhã e vejo uma
nova teia de aranha no batente. Uma abelha jaz morta. A armadilha mortal, uma
das infindáveis formas de matar disponíveis na natureza, novamente funcionou.
Hoje haverá a ingestão do conteúdo interno da abelha, saciando a aranha, agora
escondida por trás de um monte de seda no canto de sua teia e de minha porta.
Eis a minha primeira morte do dia.
A
aranha, contudo, mal sabia o que lhe esperava. Neste mesmo dia, seria capturada
por uma vespa, que depositaria um ovo dentro dela. Quando esse ovo eclodir, a
larva se alimentará da aranha por dentro, ainda viva, até que morra. Outras
vespas, contudo, procuraram lagartas (há muitas em meu quintal). Colocaram seus
ovos dentro delas. Quando essas lagartas passarem para a fase de pupa, as
larvas da vespa se desenvolverão se alimentando das ex-lagartas em metamorfose.
Ao fim, com a eclosão dos casulos, o mundo verá novas vespas, e não borboletas.
Uma
atraente planta da família Nepenthaceae, cujo
formato assemelha-se a um vaso, seduz insetos com seu irresistível aroma
adocicado. Eles entram em seu interior, onde escorregam por suas paredes lisas
até o seu fundo. Os cílios voltados para baixo ajudam a impedir o retorno do
inseto desesperado, que cai na poça de água no fundo do recipiente, onde sua
morte acontecerá. Lá, na lagoa mortal, larvas iniciarão o trabalho de digestão,
comendo os insetos. A excreção após a digestão feita pelas larvas, assim como
as migalhas restantes do inseto, alimentarão então a planta, que não conseguiria
fazer esse trabalho sozinha. Trata-se, portanto, de uma troca: a larva dá à
planta o processo inicial de digestão e a planta dá à larva uma piscina de água
límpida, não fétida e muito bem oxigenada, já que esta planta dedica parte
importante de suas células clorofiladas para isso, estando voltadas para o lado
de dentro do recipiente, diretamente em contato com a água, dedicando-se
primordialmente para a função de oxigenar o lago mortal para insetos e vital
para as larvas. É um serviço combinado para morte visando a própria vida. Vale
comentar que plantas da família Nepenthaceae de maior
porte conseguem armazenar em seu lago mortal animais maiores, como aves ou
pequenos roedores.
Nomeamos
de “natureza” essa constante guerra por sobrevivência. A própria vida, em
realidade, é uma constante luta contra a morte. Dentro de nossos corpos há uma
guerra entre invasores e células de defesa que só se encerrará no momento de
nossa morte (talvez ocorrida justamente por tais células perderem a batalha
final).
A
vida é, ao mesmo tempo, uma luta contra a morte e uma dependência da morte.
Alguns seres têm a dádiva de serem autotróficos e produzirem seu próprio
alimento, por exemplo pela fotossíntese. Para os demais, resta a inescapável
barbárie. Para nos mantermos vivos, dependemos da morte de outros seres.
Eis
a natureza! E, no quadro acima exposto, ainda não se revela a terrível e
mortífera enchente que cada chuva representa para os menores animais ou o
furacão que um vento ordinário pode representar para tais animais ou mesmo para
aves em seus ninhos, que podem ser levados ao chão, gerando, ao menos aos
filhotes, a morte. Isto sem falar em incêndios naturais, vulcões, períodos de
estiagem, alagamentos, calor intenso, frio intenso e toda a gama de desastres
que a natureza pode oferecer, gerando dor e sofrimento a um número incontável
de seres.
Podemos
até ter sensações aprazíveis com a contemplação da diversidade da vida na Terra
ou com paisagens naturais. Esse prazer, contudo, é mais de ordem estética do
que ética. A natureza foge aos princípios que qualquer indivíduo ou sociedade
com padrões morais minimamente aceitáveis conceberia ou praticaria.
Se
nos empenhássemos em ver com os olhos da mente todo o terror existente em cada
paisagem aparentemente pacífica, teríamos um importante pressuposto cosmológico
sobre o qual poderia se estruturar toda uma filosofia de vida.
Como
consequência das percepções sobre a natureza anteriormente expostas, duas possibilidades se abrem:
(a)
Aceitar a natureza como ela é, normalizando a barbárie, a violência, a luta de
uns contra outros visando a própria sobrevivência e o esforço por destacar-se
em relação aos demais, no intuito de aumentar as chances de alimentar-se e
procriar-se.
Essa
visão levaria a um questionamento das tentativas de manter-se uma relação de
respeito frente ao sofrimento dos seres, sejam esses seres humanos, como em
propostas de justiça social, sejam esses seres não-humanos, como no caso das
propostas ligadas aos direitos dos animais. Quem segue essa possibilidade como
fundamento de seu modo de coexistir neste mundo dá voz, por exemplo, ao
questionar um vegetariano, àquele argumento tão comumente ouvido: “mas é a cadeia alimentar!”.
(b)
Opor-se à natureza, ou seja, tornar-se aquilo que não é o seu modo normal de
“funcionamento”: negar, no limite das possibilidades a nós possíveis, usar
outros seres, especialmente aqueles que são capazes de sofrer, para a
realização de nossas próprias necessidades; abster-se, com todo o nosso
empenho, de dominar outros seres, explorá-los e violentá-los visando nosso
próprio poder ou a maximização de nossas possibilidades de realização.
Julgo
ser o segundo caminho superior: é cabível que nos coloquemos contra a lógica da
natureza em nome dos seres que compõem a própria natureza. Como Isaac Bashevis
Singer, entendo que “não há nem pode
haver justificativa quer para a dor do lobo faminto, quer para a do cordeiro
ferido”. A civilização é um esforço de transcender a natureza.
Com
base nessa análise, é possível expor uma ideia que, de início, parece terrível,
mas, com alguma análise, parece correta: do ponto de vista moral, poderíamos
ser superiores à natureza.
Essa
possível “superioridade”, contudo, é ela mesma a causa de nossa tragédia. Basta
observar por poucos segundos o que a humanidade, mesmo com toda a capacidade de
consciência que lhe é possível, tem feito no/do planeta e com (contra) seus
habitantes para que tal tragédia se torne evidente.
Outros
animais promovem o que, aos nossos olhos, podemos identificar como uma
barbárie, mas o grau de escolha que possuem sobre como viver é ínfimo ou nulo.
Não são, portanto, de modo geral, conscientemente bárbaros. Nós escolhemos como
viver. Possuímos uma enorme capacidade de análise e escolha. Nossa consciência,
portanto, nos torna culpados.
O valor e o terror da senciência
A
diversidade de formas de vida em nosso planeta é imensa e impressionante. Os
seres vivos necessitam interagir com o ambiente para sobreviver e, por isso,
possuem algum tipo de sensibilidade (de percepção do mundo). Contudo, diversas
espécies de seres vivos - em realidade, diversas espécies de animais - além de
possuírem sensibilidade, também possuem diferentes níveis de compreensão das
informações percebidas pelos seus corpos: possuem um amálgama de sensibilidade
e consciência que costumamos nomear de “senciência”.
Durante
muito tempo, a humanidade concebeu ser ela a única espécie consciente no
planeta. Hoje, contudo, graças aos avanços do conhecimento científico (ainda
que a simples observação atenta do mundo desse conta de se ter, ao menos, a
mesma sugestão), sabemos que esse aparente monopólio é apenas mais uma forma de
arrogância, entre as tantas que configuram aquilo que chamamos de “humano”.
Diversas outras espécies de animais são também sencientes: possuem não apenas
sensibilidade para perceber o mundo, mas entendem, de alguma forma, o que estão
percebendo, sendo capazes, inclusive, de reagir emocionalmente a tais
entendimentos. Em linguagem religiosa, poder-se-ia dizer que a era da concepção
de que animais não têm alma acabou. Em linguagem laica, pode-se dizer que a era
da concepção de que animais não possuem inteligência ou sentimentos acabou.
Um
dos marcos contemporâneos dessa mudança de entendimento foi a Declaração de
Cambridge, proclamada publicamente nessa cidade no dia 7 de julho de 2012,
durante a Francis Crick Memorial Conference on Consciousness in Human and
non-Human Animals, no Churchill College da Universidade de Cambridge, por Low, Edelman e Koch. Nela é possível ler que
“evidências convergentes indicam que
animais não-humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e
neurofisiológicos dos estados de consciência juntamente com a capacidade de
exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências
indica que os humanos não são os únicos
a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais
não-humanos, incluindo todos os mamíferos e aves, e muitas outras criaturas,
incluindo os polvos, também possuem estes substratos neurológicos”.
Philip
Low, neurocientista canadense e um dos autores da declaração acima, em
entrevista para a revista brasileira Veja, disse ainda: “sabemos que todos os mamíferos, todos os pássaros e muitas outras
criaturas (...) possuem as estruturas nervosas que produzem a consciência. Isso quer dizer que esses animais sofrem.
É uma verdade inconveniente: sempre foi fácil afirmar que animais não têm
consciência. Agora, temos um grupo de neurocientistas respeitados que estudam o
fenômeno da consciência, o comportamento dos animais, a rede neural, a anatomia
e a genética do cérebro. Não é mais possível dizer que não sabíamos.”
Não é mais possível dizer que não sabíamos. Esse é o estado atual do conhecimento humano.
Pois
bem, outros animais, além de nós, possuem senciência: habitam este planeta de
forma consciente. A senciência traz consigo, ao mesmo tempo, um enorme valor e
um enorme terror. É de grande valor e utilidade entender o que se passa ao
nosso redor e poder criar soluções para problemas de nossa sobrevivência, sejam
eles básicos ou complexos. Reconhecer perigos e possibilidades de sobrevivência
é de extrema utilidade para qualquer ser vivo.
Ao
mesmo tempo, ser senciente, ou seja, ter a capacidade de sofrer, em uma
natureza como a descrita no início deste ensaio, é um convite para o horror: um
contínuo e infindável holocausto. Ser capaz de sentir dor física e sofrimentos
emocionais em uma natureza na qual a sobrevivência de um depende da perseguição
e da morte de outros, em uma natureza na qual existe chuva, tempestades, calor
extenuante, frio congelante, ventos capazes de destruir tocas e ninhos, secas e
alagamentos, para se manter em poucos exemplos, não é exatamente uma benção.
Estarmos
cientes do fato de que outros seres – humanos ou não – são sencientes abre-nos
um imenso campo de preocupações para além de nossas próprias sobrevivências (e
das relações das quais fazemos parte, que, em última análise, costumam ter a
mesma função). Essas preocupações formam aquilo que podemos chamar de “ética”,
ou seja (para lançar mão de uma conceituação bem sintética), a preocupação em
escolher o que fazer e o que não fazer tendo como objetivo a menor geração
possível de sofrimento.
Com
tal definição, não quero submeter os diversos membros da natureza a algum tipo
de cobrança moral, como se o comportamento dos animais fizesse deles seres
imorais. Moralidade, a princípio, é um atributo humano. Animais não humanos,
mesmo possuindo algum grau de consciência do mundo, provavelmente não têm muita
escolha sobre, por exemplo, seus cardápios ou hábitos. Sendo assim, falar em
ética para analisar o comportamento de animais, mesmo considerando a senciência
neles existente, parece-me que será sempre um exagero, quando não um mero
equívoco. Animais, de modo geral, fazem aquilo que suas espécies fazem por
natureza, visando aumentar suas chances de sobrevivência em um mundo perigoso e
competitivo.
Para
ser um pouco mais rigoroso nessa afirmação, já que os animais não são
necessariamente meros autômatos, espécies de robôs programados pelos seus DNAs,
há espaço para alguma divergência de comportamento entre membros de uma mesma
espécie (ainda que essa divergência seja documentada apenas em algumas
espécies), mas não ao ponto de poderem escolher modos de vida tão díspares,
como acontece entre humanos.
Em
síntese, a senciência, ponto fundamental da argumentação em favor do veganismo,
é algo de grande valor, uma enorme conquista evolutiva, mas, ao mesmo tempo – e
talvez isto tenha um peso ainda maior – é por conta dela que um número
incontável de animais neste planeta possui existências terríveis, em meio a
dores, medo, ansiedade, tristeza etc. Nascem, crescem, se reproduzem e morrem
em sofrimento.
Ao
mesmo tempo, é por conta da senciência que nós, humanos, aptos a entender a dor
alheia, precisamos nos compadecer de todos os seres vitimados pela lógica da
natureza, assim como de todos aqueles que são vítimas dos hábitos humanos
(esses, já no foco da prática vegana), e nos opormos a esta loucura.
O lugar da compaixão e da ajuda
Tal
oposição à natureza não deve se dar, obviamente, de forma violenta, aumentando
a violência contra seus membros, mas pelo aprimoramento de nossos modos de
viver. A oposição não é aos indivíduos que compõem a biosfera, mas à lógica
natural da sobrevivência. Ser vegano é uma oposição à lógica da natureza;
compadecer-se das dores alheias – seja de humanos ou não humanos -, ajudar aos
necessitados, aos que obtiveram ou nasceram com alguma deficiência física ou
mental, aos que não conseguiram ou não conseguem garantir a própria sobrevivência,
é opor-se à natureza. Veganismo e “proteção animal” (resgate, cuidados, adoção,
santuários...) são práticas de oposição à natureza.
Tais
afirmações não deveriam nos tirar o sono. Um animal gravemente ferido ou doente
morreria ou seria morto na natureza ou nas ruas e estradas de nossos reinos
urbanos. Alguns deles estão vivos e bem de saúde na casa de muitas pessoas
compassivas.
O
que deveria nos tirar o sono é a normalidade da natureza e os costumes
exploratórios da humanidade, e não a oposição a tais catástrofes.
Frente
à natureza geradora de sofrimentos constantes, deveria surgir em nós algo que
poderia ser visto como um princípio
central para nossas ações: a compaixão. Se eu sei o que é sofrer e consigo
reconhecer a presença do sofrimento em outros seres, cabe a conclusão lógica de
que o sofrimento deles é tão ruim quanto aqueles que eu experiencio. Esse
exercício da razão aliada à sensibilidade deveria moldar nossa moralidade.
É
justamente porque eu sou senciente e minha consciência é desenvolvida ao ponto
de reconhecer o sofrimento em outros seres sencientes que posso colocar-me no
mundo de forma desencantada e realista (a última parte deste ensaio abordará
esse tema de forma direta).
Alguém
poderia opor-se à abordagem aqui apresentada dizendo que ela é muito
negativista, focando apenas em um lado da realidade, o sofrimento, e não
considera a presença do bem, como o fato de tantas pessoas ajudarem outras ou
agirem por compaixão, sendo isso algo que negaria a onipresença do sofrimento.
Mas não. A ajuda só tem lugar no mundo justamente porque o sofrimento é
dominante. Não haveria necessidade de ajuda se os seres não estivessem em
sofrimento ou não necessitassem que alguém evitasse que um novo sofrimento se
instalasse. A compaixão e a ajuda são evidências da dominação do sofrimento
como marca da existência de todos os seres sencientes. A palavra “compaixão”,
vale dizer, sem novidade, significa exatamente “sofrer com”, “sofrer junto”.
Trata-se do explícito reconhecimento do sofrimento em seres que estão para além
de nosso próprio umbigo.
Compaixão
e ajuda são, portanto, modos de existir de quem desenvolve um olhar acurado
para a realidade profunda do sofrimento de todos os que tentam sobreviver neste
planeta.
Do que falam os que defendem um retorno à natureza?
Um
dos discursos pretensamente políticos mais comuns em nossos tempos é o de que
deveríamos retornar à natureza. Esse discurso usualmente se dá com substantivos
e adjetivos típicos, tais como “mãe Gaia” e outros do gênero.
De
certo ponto de vista, o discurso é compreensível: vivemos – a maioria de nós em
centros urbanos - sugando e destruindo “recursos” de toda a natureza,
levando-os para centros de processamento nas cidades ou no próprio campo e os
transformando em produtos comercializáveis. Estamos, dessa forma, fora da
natureza, entendendo-a apenas como uma fonte de recursos a serviço do império
humano. Essa posição antropocêntrica é, de fato, reprovável e altamente
destrutiva. Desse ponto de vista, faz sentido se defender que devemos nos
reconhecer como partes da natureza e agir de forma mais decente com relação a
todos os outros seres e ecossistemas que formam a rede imensa de relações à
qual chamamos de “natureza”.
Por
outro lado, há certo romantismo ambientalista no ar do mundo contemporâneo que vê
na natureza o lugar da paz e da harmonia. Nada poderia estar mais longe da
verdade. A natureza é o lugar da guerra por sobrevivência. A natureza só parece
pacífica quando a olhamos de longe ou a controlamos, como em um jardim ou
bosque fabricado, pelos quais passamos sem olhar de perto para os hábitos dos
pequenos seres que neles vivem, sem vermos a guerra para que uns se alimentem
de outros.
Quem,
em sã consciência, diria que se sentiria em completa tranquilidade sentado, de
noite, no meio de uma floresta, sem barraca, sem tela contra mosquitos e sem
uma fogueira próxima para iluminar o ambiente e afastar animais caçadores?
Uma
praia, talvez, seja mais harmônica que uma floresta, para não ficar apenas em
um exemplo drástico, mas essa harmonia depende de barrar (ou inexistir) em
nossas mentes qualquer esforço para pensar sobre o que está acontecendo naquele
exato momento sob aquele universo de água bem à nossa frente.
Em
suma, quando alguém resolve “retornar à natureza”, sentir-se novamente parte
dela, e, nesse esforço, sente-se em paz, em profunda paz, essa pessoa está, na
verdade, afastando-se ainda mais da natureza, pois em contato direto com o
“mundo natural” é quando mais ignora o que está de fato acontecendo ao seu
redor.
Mas
inexiste aquela sensação de paz quando em uma praia ou uma cachoeira? Não,
obviamente. A sensação existe. Ela vem, em parte, de um certo silêncio
aprazível (e inexistente para quem vive em cidades), mas mesmo esse silêncio é
questionável, pois, como nos ensina com maestria a frase que abre o belo filme
O Enigma de Kaspar Hauser, “são estes
gritos assustadores ao redor que chamamos de silêncio?”.
Mais
do que isso, tal sensação de paz vem de certa contemplação estética
pré-determinada, que entende que tudo o que parece mais natural é,
automaticamente, harmônico e pacífico. Trata-se de uma visão distorcida por
crenças, ideologias ou, por vezes, por substâncias alteradoras da consciência.
Há
também certa paz advinda de estados mentais mais silenciosos (e pode se achar
mais fácil alcançá-los longe dos ruídos da cidade). É fato. Contudo, esses
estados mentais não derivam de se ter ou não contato direto com a natureza, mas
de como trabalhamos nossas mentes em qualquer lugar. Simplicidade ajuda, e
estar longe do caos da rotina cotidiana torna os dias mais simples, mas, ainda
que possamos confundir, isso é diferente de se reconhecer paz na natureza. Paz
mental não é sinônimo de paz ambiental, ainda que tendências de pensamento
contemporâneas (ao estilo New Age) – novos exemplos de arrogância mascarada de
humildade, que acham que o mundo é apenas uma projeção das mentes humanas (“pense e o Universo mudará”) - assim
gostem de confundir.
A
moralidade é uma construção de enorme valor. Ela depende de vermos as coisas
com clareza e racionalidade. Diversos hábitos e valores terríveis que marcaram
a história humana são atualmente rechaçados por parte da humanidade. Isso se dá
por mudanças de padrões culturais advindos de muito pensamento ético e
político. Esse é o caminho que devemos trilhar, e não marcharmos na contramão.
Obviamente,
muito do que fazemos hoje como sociedade é terrível e altamente destrutivo, e
isso precisa mudar, mas mudamos isso com pensamento racional e ético, com
conhecimento científico eticamente embasado, e não com visões estereotipadas
sobre um retorno a uma natureza idílica e pacífica, como se pudéssemos viver em
um paraíso na Terra.
Veganismo e uma nova postura cosmológica
O
veganismo, ou seja, a tentativa de se viver causando o mínimo impacto possível
aos demais seres sencientes, não escravizá-los, torturá-los ou assassiná-los, é
uma mudança profunda na conduta humana, especialmente no modo como nos
relacionamos com as demais espécies do planeta. Seus princípios, se levados a
sério, nos levam a questionar tradições humanas muito arraigadas em nós, como o
antropocentrismo e o especismo, além da própria lógica da natureza.
Veganismo
não é perfumaria, como, infelizmente, muitos veganos têm feito parecer. O
veganismo pode se tornar, e infelizmente não tem sido, uma profunda alteração
cosmológica, uma alteração profunda na relação entre humanidade e natureza
derivada de alterações profundas em nossa própria natureza, negando nela aquilo
que, herdado da própria natureza, representa o egoísmo, a violência e a
exploração de outros seres para a satisfação de nossos próprios interesses.
Por
mais paradoxal que seja, em nome da natureza, é preciso nos opormos à natureza.
Em nome do respeito aos seres que compõem a natureza, é preciso negarmos em nós
elementos de nossa própria natureza.
Há
duas formas de nos opormos à natureza: uma é por egoísmo, outra é por
compaixão. A primeira é a usualmente praticada. Trata-se de nosso comportamento
padrão de opressão de toda a natureza para realizarmos os desejos materiais
humanos, ou seja, a transformação de toda a natureza em matéria-prima apta à
exploração humana.
A
segunda forma é percebermos que, apesar de sermos parte da imensa rede da vida
no planeta - e, neste sentido, precisamos nos reconectar à natureza -,
precisamos também compreender o terror de seu modus operandi e negá-lo em nossa dimensão moral.
Em
suma, devemos nos unir ao restante da natureza em nossa dimensão física,
corpórea, ecológica, ao mesmo tempo em que devemos nos opor, nos destacar da
natureza, em nossa dimensão moral.
Ideais
como altruísmo, compaixão, fraternidade ou democracia são oposições à lógica da
natureza. Se agíssemos apenas pensando em nossa sobrevivência, pela urgência de
nossos impulsos naturais, o mais normal seria o egoísmo, o absolutismo e o
escravagismo.
Quando
pensamos em nosso modo de organização social contemporâneo, percebemos que
houve, principalmente nos últimos séculos, um esforço de nos distanciarmos de
nosso padrão natural, demarcando-se pelas leis o ideal democrático que
considera a divisão de poderes, as liberdades individuais e o respeito à
diversidade.
Quando
pensamos, contudo, nos animais de outras espécies, ainda somos absolutistas e
escravagistas. Faz-se necessária, ainda, uma mudança cosmológica de mesma
natureza.
Sendo assim, o movimento
aparentemente contraditório de aproximar-se e distanciar-se da natureza é, em
realidade, o princípio para profundos aprimoramentos morais no sentido de
convivermos de maneira mais digna tanto entre nós, humanos, quanto com os
demais seres sencientes da natureza e com os ambientes naturais, lar de tais
seres sencientes e demais seres vivos.
Reafirmando e negando a natureza em
nós, concomitantemente, podemos vislumbrar novas e mais respeitosas
cosmovisões.
Essas
alterações cosmológicas são oriundas de nosso próprio esforço e serão sempre
imperfeitas, mas, ainda que com limites, a natureza humana é passível de
transformações, e, ainda que sendo partes de uma natureza bruta, é possível nos
superarmos.
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