Nova abolição, nova ecologia, nova política (2014)
Nota
preliminar
Este texto foi
escrito a pedido de membros da Sociedade Vegetariana Brasileira em 2014 para
ser transmitido ao então candidato à presidência da República Eduardo Jorge.
Como este é vegetariano e próximo a essa entidade, estavam então em diálogo
para estabelecerem propostas para a questão animalista em sua campanha.
Pediram-me textos para fornecer para ele e resolvi escrever este resumo de
ideias presentes em textos anteriores tanto sobre a visão abolicionista em
relação ao tratamento dos animais, quanto em relação à ideia do “verde”, nome
do partido de tal candidato. Foi uma forma de, para além de fornecer
informações, questionar também alguns pressupostos do ambientalismo tradicional
(nota de 2019).
Nova
abolição
Uma das questões
mais vivas e vanguardistas de nossos tempos é a de nossa relação com as demais
espécies animais. Esse questionamento repercute em diversas dimensões de nossa
vida, tais como nossos hábitos alimentares, de consumo, de ciência e de
entretenimento, e é alimentado por diversos focos de análise, como a ética, a
ecologia e a saúde.
Embora essa
questão gere tantas e diversas argumentações, tantos humores, ânimos, rejeições
e conflitos, especialmente quando ideias como vegetarianismo e fim dos testes
em animais são levantadas, em realidade ela possui, em sua dimensão diretamente
ética, um argumento simples: se julgamos ser errado escravizarmos, torturarmos
e violentarmos seres humanos, pois consideramos que devem ter sua integridade e
autonomia respeitadas e não serem alvos de imposição de sofrimento
desnecessário, precisamos também assim considerar as nossas ações em relação
aos outros animais, pelos simples fatos de que também possuem seus próprios
interesses em suas vidas (suas vidas não nos pertencem) e de que são capazes de
sofrer e de ter algum tipo de consciência sobre o que sofrem (sobre seu prazer
e sua dor) – são também sencientes.
Pelo fato de os
animais estarem quase sempre subjugados aos interesses humanos, nos servindo
involuntariamente e sendo alvos de imposição de diversos e pesados sofrimentos
corporais e psicológicos, o nome mais indicado para dar título ao papel que
comumente animais possuem em nossa cultura é escravidão.
Acreditando que
isso é eticamente errado, faz-se necessário um movimento que vise a libertação
dos animais das amarras criadas para eles pela humanidade: um movimento de
abolição. Não apenas leis que melhorem o bem estar dos escravos com medidas
paliativas que diminuam a intensidade de suas torturas, mas, como objetivo
maior, como princípio ético, a total abolição da escravidão.
O modo de vida
que tenta eliminar o consumo de tudo aquilo advindo da escravidão e tortura de
animais é chamado Veganismo, dentro do qual destacam-se as posturas
vegetarianas, contra testes em animais, contra uso de animais como entretenimento,
contra a transformação de animais em matéria-prima (como na fabricação de
vestimentas) etc.
Nova
ecologia: para além do ambientalismo
Provavelmente
o grande símbolo do ambientalismo é o verde, a defesa do verde. Contudo, é
extremamente necessário, para almejarmos realizar transformações profundas em
nossas problemáticas ecológicas, assim como em nossos padrões éticos e
políticos, ir-se além do verde, ampliar o escopo de percepção e ação.
A
natureza só é verde quando a olhamos de forma generalizada, quando somos uma
dimensão separada a observando de fora. A natureza, em realidade, compõe-se de
todas as cores e, importantíssimo não esquecer, do invisível, ou seja, de todas
as incontáveis relações que são a base da existência de tudo o que há. Quando
olhamos a natureza em suas múltiplas escalas e inter-relações, o verde, ainda
que belo, torna-se apenas mais uma cor num espectro que nos aparenta infinito.
Se queremos estabelecer ações humanas ecologicamente mais dignas, precisamos
nos atentar para todas as “cores” e para todas as relações que embasam nosso
mundo.
Esse
salto em relação ao ambientalismo tradicional é, também, um avanço em relação a
visão coletivista que embasa sua prática, em que o que importa é apenas o
coletivo, os habitats, os ecossistemas, o geral, sem consideração aos seres
particulares (percebida, por exemplo, na lógica de que se determinada espécie
não está entrando em extinção, não haveria problema em matar parte de seus
membros).
Nova ecologia, nova política
Ir
além das generalizações é opor-se a uma cultura centrada na opressão aos
indivíduos, seja pela massa, pelo coletivo ou por outros indivíduos e espécies.
Essa postura, contudo, não representa uma defesa do individualismo, também
dominante em nossa cultura, em que para se cumprir interesses individuais
passa-se por cima dos interesses de todos os outros, indivíduos ou
coletividades. O fato de que tanto o individualismo quanto o coletivismo
coexistam nas bases de nossa cultura mostra o quanto não são, em fundamento,
tão díspares. Ambos são opressivos e violentos.
Ir
além do ambientalismo padrão é viver uma proposta de pensamento ecológico nem
individualista nem coletivista, mas baseada na tentativa de construir um mundo
de coletividades saudáveis formadas por indivíduos ao mesmo tempo autônomos e
coexistentes.
Quando
o modo de vida de um (o que é necessário para a sua realização) não depende do
uso, da opressão, da subjugação de outros, sua autonomia é verdadeira e a
coletividade criada a partir daí pode ser mais saudável, respeitosa, digna,
justa e bela. Um ser que se julga autônomo por fazer o que quer, dependendo
para isto da opressão de outros, não é autônomo nem livre. É um escravo de si
mesmo e gera um mundo de escravidão (exemplos:escravizar e matar um animal para
satisfazer o desejo por um bife ou pisar sobre outras pessoas para conquistar o
próprio desejo de riqueza material).
Ater-se
aos princípios ecológicos da vida – tais como coexistência, impermanência e
interdependência – é fundamento para uma política mais digna e profunda. É
preciso pensamentos e práticas capazes de respeitar o compartilhamento do
mundo, para que possamos verdadeiramente coabitá-lo. Nossa política deve, mais
do que possuir preocupações ambientalistas, ser de fundamento ecológico.
Se queremos
realmente a construção de um mundo melhor, ele não pode ser pautado nos
interesses puramente econômicos de uma pequena parcela da população. É preciso
que as linhas mestras da política de um povo sejam baseadas em princípios
verdadeiramente éticos e ecológicos. Por exemplo: não é porque a pecuária possui
presença central na economia brasileira que deve ser impulsionada, se é um erro
crudelíssimo e escravocrata e responsável por muitos e pesados impactos ao
planeta da dieta centrada em produtos de origem animal[1].
Os princípios
ecológicos acima expostos, assim como os princípios éticos em relação aos
animais antes apresentados precisam encontrar-se, fundirem-se em nossa
política. É preciso que haja um avanço em relação ao ambientalismo tradicional,
considerando os animais também individualmente (a tortura de cada um deles é
errada, já que, como visto acima, partilham dos mesmos porquês que nos fazem
entender que oprimir, subjugar, violentar e escravizar um humano é errado),
assim como é preciso que essa preocupação não seja desvinculada de tomadas de atitude
em relação ao modo como nos relacionamos com toda a natureza: como produtos –
mesmo os de origem vegetal - são gerados, como nossa produção industrial
impacta o planeta, como dominamos toda a Terra como se fosse uma propriedade de
nossa espécie etc. Cabe aí, em complemento ao termo “Veganismo”, a ideia de um
“Ecoveganismo”.
[1]Dados importantes sobre isto podem ser obtidos nos
seguintes endereços:
Relatório da HSI sobre “o impacto da
criação de animais para consumo no meio ambiente e nas mudanças climáticas no
Brasil”: http://www.hsi.org/assets/pdfs/hsi-fa-white-papers/relatorio_hsi_impactos_pecuaria.pdf
Apostila da SVB sobre os “Impactos Sobre
o Meio Ambiente do Uso de Animais para Alimentação”: http://www.svb.org.br/livros/impactos-alimentacao.pdf
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