Tradição e moralidade: simulacros éticos (2018)

 Tradição e moralidade: simulacros éticos


O papel das tradições em nossos comportamentos individuais e coletivos é comumente e constantemente um ponto de tensões. Por um lado, é por via das tradições que aprendemos o que a humanidade já construiu, já pensou e já viveu. Por outro lado, as tradições podem manter vivas uma série de comportamentos reprováveis - e por vezes nefastos - que poderíamos já ter abandonado caso eles não fizessem parte de “pacotes” de ideias tradicionalmente estabelecidos, especialmente quando esses pacotes trazem consigo elementos que dificultam seu questionamento, como os que apelam ao medo de punição em caso de oposição ou mesmo de dúvida.

É importante para qualquer ser humano conhecer os caminhos pelos quais nossa espécie já caminhou, apropriar-se deste histórico e se deixar influenciar pelas conquistas intelectuais, morais e materiais de nossos milhares de anos de história documentada. Contudo, é preciso haver cuidado para não se dogmatizar as tradições, de forma que o simples fato de algo ser tradicional o torne sagrado, inquestionável ou obrigatoriamente valoroso.

A violência, a guerra, o assassinato, o roubo, o estupro, a estupidez, assim como diversas outras facetas terríveis da humanidade são tradicionais, já que sempre estiveram presentes em nossos comportamentos e em nossas sociedades. Nossas estruturas de poder injustas e opressoras são também bastante tradicionais. A ideia de que há castas de pessoas mais importantes que outras é parte fundante de nossas mais tradicionais tradições, assim como a ideia de que nossa espécie é superior a todas as outras da face da Terra.

Quando tradições ainda seguidas pelas pessoas não se permitem nem a lenta transformação existente em qualquer cultura viva, elas se tornam ainda mais perigosas, pois, apesar de trazerem até nós as reflexões morais das gerações passadas, quando elas se blindam e impedem mudanças, brecam as reflexões morais contemporâneas, voltadas para assuntos ou nuances argumentativas que não importavam aos pensadores que criaram ou modificaram tais tradições no passado.

Infelizmente, muitas vezes as tradições acabam sendo mais uma forma de castração do avanço moral da humanidade do que uma forma de ajudá-la a viver com sabedoria e compaixão.

Como falar em mudanças de comportamento quando o comportamento de alguém, mesmo que errado (ao passar pelo crivo da ética racionalmente embasada ou do conhecimento cientificamente produzido) é chancelado, normalizado ou desejado  por algum texto sagrado, divindade, guru, ser iluminado, costume regional ou ideologia?

Por exemplo: como defender uma abordagem ética de respeito aos animais, como o veganismo, no contexto de uma tradição na qual o tratamento cruel de animais faz parte de sua estrutura, sendo chancelado ou mesmo requerido por ela? Isso faz com que a identidade pessoal de quem segue tal tradição se torne facilmente inseparável do tratamento cruel de animais.

Contudo, nossa principal identidade deve ser ética. Isto quer dizer que o que deveria guiar primordialmente os nossos atos, as nossas leituras de mundo, é a reflexão ética racionalmente embasada. Nenhum ato responsável pela geração de sofrimento a algum ser deve ser conservado ou ocultado apenas por fazer parte de algum pacote de ideias tradicionalmente estabelecido - seja por religiões, costumes ou ideologias.

Caso não fosse assim, descendentes de astecas poderiam reivindicar o direito a voltar a extirpar o coração de pessoas ainda vivas e esmagá-lo na parede de uma pirâmide para louvar seu deus, judeus voltariam a apedrejar pessoas desviantes da regra divina nas margens das cidades, descendentes de romanos poderiam voltar com a crucificação e todo tipo de agressão a humanos e animais ainda praticada em nome de tradições (religiosas, regionais, nacionais ou ideológicas) deveria seguir sem questionamentos.

A compaixão, ou seja, o ato de perceber e sentir o sofrimento alheio em si mesmo, é um exercício mental de estabelecimento de relações. Trata-se de reconhecer o sofrimento desnecessário como algo negativo a ser evitado e, ao perceber tal sofrimento em algum ente, sofrer por tal motivo. Sendo fruto do estabelecimento de relações, a compaixão é um movimento da razão. Contudo, no contexto das tradições, ser compassivo, justo e bom está intimamente vinculado a seguir os exemplos e códigos de conduta estabelecidos, mesmo quando tais exemplos e códigos não são compassivos, justos nem bondosos (e, muitas vezes, não são, como demonstra o exemplo acima, sobre nossa relação com os demais animais do planeta, assim como diversos outros comportamentos ainda comuns no modo como humanos tratam outros humanos).

Perde-se, assim, o real significado das palavras, pois as pessoas tendem a defender certas palavras (certos conceitos inerentes à doutrina moral escolhida ou herdada) mesmo que o significado real das mesmas esteja sendo negado ou contradito. Isto é, é possível defender a compaixão, a bondade e a justiça como termos estruturais de uma cosmovisão sem ser compassivo, bom e justo. Trata-se de um simulacro ético, um simulacro da moral.

Não importa se uma divindade, um ser considerado iluminado, um guru, um costume estabelecido ou um pressuposto ideológico apoia ou deseja o assassinato ou o consumo de animais, a escravidão, o apedrejamento, o justiçamento nas ruas, o tratamento de mulheres como seres inferiores, a homofobia ou o genocídio de povos vizinhos e de pessoas com ideias divergentes. Essas divindades, seres iluminados, gurus, costumes e pressupostos estão errados e o culto cego a eles ajuda a reproduzir padrões morais que fazem com que nossa sociedade seja eticamente pior do que a sociedade que poderíamos vir a ser.

Em suma, nenhum livro, tradição, costume ou ideologia tem o direito de dar a alguém o direito de ser cruel.

Dennis Zagha Bluwol, 2018

Comentários