Ética libertária interdependente: libertação animal, ecoveganismo, saúde e libertação humana (2010)
Ética libertária interdependente: libertação
animal, ecoveganismo, saúde e libertação humana (2010)
Nota preliminar (2020): Entre 2009 e 2010, ampliei e modifiquei parte das ideias centrais de meus primeiros ensaios sobre veganismo, desenvolvendo as ideias de uma ética libertária interdependente e de que precisaríamos pensar em um ecoveganismo. Tais ideias fundamentaram então minhas palestras e meus textos pelos anos seguintes, nos quais tentei traçar conexões e antagonismos entre o veganismo e o ambientalismo.
1- Expandindo o veganismo
Uma ideia
é cada vez mais comum em nossa sociedade: a necessidade ética de se relacionar
com os animais não humanos como indivíduos merecedores de liberdade e respeito,
ou seja, que convivamos com eles não como mercadorias ou instrumentos para as
vontades humanas, mas como seres merecedores do mesmo direito que nós de
viverem suas vidas de acordo com seus interesses, sem serem explorados,
escravizados, torturados ou assassinados.
A crítica
ao modo como nos relacionamos com animais de outras espécies baseia-se na ideia
de que há um especismo em nossa mentalidade padrão, ou seja, do mesmo modo que
muitos são sexistas (crêem que o sexo de um indivíduo o faz mais ou menos digno
de respeito) ou racistas (crêem que a “raça” ou etnia de alguém o faz mais ou
menos digno de respeito), nossa moralidade padrão crê que membros da espécie
humana são, por definição, mais dignos de respeito do que membros de outras
espécies.
O conjunto
de ações cujo objetivo é (tentar) viver a vida rompendo com práticas especistas
costuma ser chamado de veganismo (e a pessoa que assume isto como uma forma de
vida, de vegano ou vegana). O veganismo é um princípio que pode ser expresso
racionalmente de várias formas, como esta: achamos
errado tratar um ser senciente de qualquer espécie como propriedade e,
portanto, usá-lo ou manipulá-lo do modo como nós, humanos, achamos que devemos
usá-lo, de acordo com nossos próprios interesses. Desse princípio, ou de
algo com tal espírito, muitas conclusões e práticas diferentes podem derivar.
Algumas
atitudes ou práticas veganas são já mais notórias socialmente, ao menos entre a população vegana e
simpatizantes, como as discussões e ações do direito animal, as discussões
éticas na filosofia, a crítica à vivissecção, o vegetarianismo, a crítica ao
uso de animais em circos, rodeios etc.
Porém,
ainda podemos ir além e questionar outras práticas que tratam animais como não
dignos de valor e respeito, causando-lhes sofrimento, tortura, morte, necessidade
de fuga, destruição de seus locais de residência, de busca por comida,
companhia e reprodução. Cabe criticar, portanto, ações que tratam o planeta
como propriedade exclusiva dos humanos (de alguns humanos mais do que dos
outros).
A seguir,
aponto algumas possibilidades de ampliação da mentalidade vegana. São
discussões que por vezes são colocadas como periféricas às preocupações
centrais do veganismo: a questão ecológica, a questão da saúde humana e a
questão da exploração dos próprios humanos. A ideia é desconstruir as barreiras
entre ética, questão ambiental, saúde, economia e política, tentando
compreender o mundo e o veganismo de modo interdependente e ecossistêmico.
Trata-se,
assim, de certa autocrítica ao veganismo (o que não se trata de negá-lo: ele é
um “mínimo ético necessário”) e aos modos de agir de parcela do movimento
vegano.
2 - A necessidade de
um ecoveganismo
Parte importante do veganismo
comumente praticado diz respeito ao boicote de produtos advindos da morte ou da
exploração direta de animais, como no caso de produtos fabricados com partes de
animais mortos ou produtos testados em animais. Além disso, veganos boicotam o
consumo de quaisquer atividades que explorem animais, como, por exemplo,
diversas formas de entretenimento.
Como oposição ao consumo desses
tipos de produto, como forma de boicote, costuma-se estimular o consumo de produtos e serviços que não utilizem
animais, vivos ou assassinados. Trata-se, portanto, da troca de um consumo por
outro.
Quais são os limites éticos e as
contradições dessa troca? É possível pensar na proposta vegana considerando
estritamente a existência de partes de animais nos produtos consumidos?
É claro que não, pois um produto
pode ser feito apenas de ingredientes vegetais e sintéticos, não sendo
responsável pela morte de um animal específico, mas pode ser responsável pela
destruição de ecossistemas inteiros: oceanos, florestas, rios, atmosfera etc.
E, assim, claro, de um número incontável de animais silvestres.
É preciso, portanto, nos
aprimorarmos em direção a um ecoveganismo, que respeite tanto os indivíduos
animais, quanto seus ambientes (necessários para a qualidade de vida de todos
os animais da Terra).
O ecoveganismo não é algo além do
veganismo, mas é uma tentativa de considerar o veganismo de forma ainda mais
séria, já que trata-se, em essência, de evitar ao máximo a geração de
sofrimento e morte de entes sencientes.
Dessa forma, a escolha de um
produto com base em preocupações de teor ético vai além do fato de conter ou
não ingredientes de origem animal. É urgente atrelar ao veganismo formas
diferentes de produzir e consumir nossa comida, nossas vestimentas,
medicamentos, ferramentas etc., visando a diminuição dos impactos aos animais,
especialmente os silvestres, muitas vezes esquecidos pelos veganos.
É preciso que os veganos repensem
suas fontes de produtos vegetais, geralmente estruturadas em grandes
monoculturas com alto uso de agrotóxicos e presença massiva de maquinários de
colheita e processamento que aniquilam um número incontável de pequenos
animais, assim como o consumo de produtos industrializados responsáveis por
enormes destruições ambientais e pelo sofrimento de inúmeros animais
silvestres.
A mentalidade do veganismo – se sua
preocupação for realmente com a tortura e a morte de animais - precisa,
portanto, expandir-se e aprofundar-se, atentando-se para o sofrimento de todos
os seres sencientes, e não apenas daqueles domesticados e escravizados pela
humanidade.
3 - Saúde ecovegana
É muito comum nas reflexões da
chamada ética animal se entender que o veganismo é uma questão ética que diz
respeito apenas a nossa relação com outros animais, não com o como cuidamos de
nosso próprio corpo. Mas será que há mesmo, do ponto de vista ecossistêmico,
tal oposição?
Alimentação
saudável é uma questão ecológica – interna e externa, pois trata-se da opção de
como nos conectaremos nas cadeias alimentares, nas redes ecossistêmicas. Sendo
uma opção, não é algo óbvio. Daí a necessária reflexão ética.
Além da
discussão apresentada anteriormente sobre a necessidade de um pensamento
ecovegano que pense não apenas na existência de animais mortos ou explorados no
produto que está sendo consumido, mas no impacto dos produtos nos ambientes e
ecossistemas, cabe o adendo de que, comumente, alimentos derivados desse
mecanismo de destruição com produtos
químicos, tóxicos e sintéticos gera também péssima saúde em animais humanos. É
muito difícil pensar em uma alimentação/padrão de consumo que seja eticamente
aceitável do ponto de vista ecovegano que não seja igualmente aceitável do
ponto de vista da saúde humana.
Isso quer
dizer que, ainda que a saúde humana não deva ser o foco central do veganismo
(de certa forma, isso seria manter uma visão antropocêntrica), ao mesmo tempo
não há como agir (como parcela dos veganos agem) alimentando-se da pior maneira
possível, considerando que a preocupação vegana é de “ética animal”, não de
saúde. Sim, a preocupação central do veganismo é com a ética animal, mas é
quase impossível considerarmos seriamente a ética animal, incluindo-se aí os
animais silvestres, alimentando-se dos piores lixos industrializados veganos
possíveis. Essa é uma ampliação perceptiva necessária.
Alimentação
ética vai além de se esta contém ou não ingredientes de origem animal. Não há
como justificar que o alimento que mantém a vida de um necessite destruir a
vida e a qualidade da vida de muitos. Precisamos de um padrão alimentar que
respeite ao máximo todas as formas de vida. Inclusive nós mesmos.
Ainda, uma
discussão pertinente ao nosso padrão alimentar é a relação entre o que se come
e como se percebe o mundo, ou seja, entre alimentação e vitalidade,
concentração e atenção. “Alimentos” que diminuem vitalidade, energia e
concentração são obstáculos à compreensão e à transformação do mundo em que
vivemos, pois agir corretamente exige que tenhamos a mente plena e atenta para
agirmos da melhor forma possível em cada situação. Haveria aí uma sutil relação
entre padrão alimentar e padrões de comportamento. Se nosso assunto é a ética,
logo, essa discussão é de grande valia.
4 - Libertação animal, libertação humana
A
libertação dos animais das amarras criadas para eles pelos humanos é tão
importante quanto a libertação dos humanos de suas próprias amarras. Ambas são
constituídas por injustiças e violências desnecessárias baseadas em
preconceitos e discriminações. A humanidade sente-se no direito de explorar os
animais para seus próprios fins e para gerar sua própria riqueza material,
assim como parte da humanidade sente-se no direito de explorar os pobres e
trabalhadores para seus próprios fins e para gerar sua própria riqueza
material. Ou seja, uma parte da humanidade apresenta-se como a elite social,
com direito de explorar o resto da espécie, assim como a espécie humana
apresenta-se como a elite do planeta, com o direito de explorar o restante da
natureza.
As
preocupações com a exploração de humanos e de suas forças de trabalho, de seus
tempos de vida, de suas dedicações para si mesmos e para aquilo que lhes
interessam devem fazer parte das preocupações de um mundo baseado no respeito e
na liberdade tanto quanto as preocupações com a exploração dos outros animais.
Em
realidade, se o ser humano é também um animal com direito a liberdade, a
exploração de seu trabalho deve ser questionada pelos movimentos e ideias de
libertação animal. As ideias trazidas pelo veganismo são, portanto, partes de
um processo de ruptura radical com uma sociedade baseada na injustiça e na
exploração.
5 - Libertação da libertação: sobre os
movimentos veganos
Os
próprios movimentos de libertação animal devem passar por autoavaliações. Como
o próprio nome diz, o que deve estar em jogo nesse conjunto de práticas e
diálogos é a libertação. Porém, muito do que se vê em nome do veganismo
demonstra tentativas de controle, homogeneização do pensamento, surgimento de
líderes e de verdades aceitas por princípio. Em nome de algo libertário e belo,
se não forem tomadas as devidas precauções, pode-se fabricar mais um centro de
poderes castradores.
Muitos
movimentos veganos, apesar de criticarem a criação de gado não-humano,
reproduzem a visão de mundo massificadora que é a base desse tipo de relação de
exploração.
Tal
comportamento tira o foco dos processos, do princípio de ser respeitoso com
todas as formas de vida, para focar-se em seguir os mandamentos do movimento,
do tipo: “não tomarás leite” ou “não comerás ovo”. Aí, o que não faz parte dos
mandamentos estipulados não é veganismo (como no exemplo: não se é vegano
comendo queijo, mas se é vegano consumindo um enlatado de soja que destruiu
ambientes e animais silvestres).
Tentar
gerar o menor sofrimento possível em todos os atos não é algo determinável
apenas por mandamentos ou comportamentos previamente estabelecidos, mas sim
algo que deve ser pensado/praticado a cada ato. Quando transformamos o modo que
achamos correto agir nas situações em um conjunto de leis definidas a serem
seguidas, matamos o princípio, matamos o indivíduo que age por consciência
própria e criamos uma norma de grupo, com seus policiais, sacerdotes
mantenedores da palavra, punições, imposições de sucessos e ostracismos:
reproduzimos a mentalidade de gerenciamento de gado humano.
Se
queremos realmente agir em prol de libertações, precisamos ficar atentos não só
à libertação animal, humana e da natureza, mas à libertação da própria
libertação, para que não criemos instituições doutrinárias e sim novos e vivos
pensamentos e práticas.
Conclusão
É preciso
uma ética que considere tanto o coletivo quanto os indivíduos: que não anule os
indivíduos no coletivo (como o ambientalismo tradicional e a cultura humana dominante
massificadora e alienante), mas que também não anule a importância do coletivo
em nome de interesses individuais. É uma relação delicada, mas cuja construção
é necessária.
Um
fundamento ético de central importância é a oposição ao uso forçado de outro
ser para a realização dos próprios interesses: não possuo o direito de tratar
outro ser como propriedade ou usá-lo, sem consentimento, para a saciedade de
meus próprios interesses, assim como ninguém tem o direito de exercer
propriedade sobre mim ou me usar, sem meu consentimento, para a saciedade seus
próprios interesses. Não há porquê, eticamente, não estender o princípio da
liberdade para seres de outras espécies. Assim, o veganismo não é algo à parte
da ética humana. É uma tentativa de viver o mundo com respeito às liberdades
individuais, desde que a liberdade de um não envolva a liberdade de tirar a
liberdade de outro: precisamos criar um mundo onde a realização de um não
signifique a exploração do outro e do que é coletivo.
O
veganismo, portanto, é parte de um processo libertário, de uma mudança de
mentalidade mais ampla, de rupturas radicais com nosso modelo de mundo
destrutivo, injusto e violento e faz-se extremamente urgente a aproximação com
outros movimentos críticos, com outras propostas e práticas de transformação do
status quo.
Desta
forma, espera-se que o veganismo se transforme em uma posição ética ampla,
complexa e aplicada a um mundo estruturado sobre a interdependência e a
coexistência: uma ética libertária interdependente. O veganismo é a proposta
ética mais vanguardista de nosso tempo, e seu potencial transformador ainda
está começando a revelar-se.
Dennis
Zagha Bluwol, 2010
Ensaio publicado na ANDA e no livro "Visão Abolicionista: Ética e Direitos Animais"
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