Reflexões sobre os movimentos “ambientalistas”, de “libertação animal” e “veganos” sob a ótica do conceito de “natureza” em tempos de capitalismo (2005)
Nota preliminar: este foi o primeiro texto sobre veganismo que escrevi e publiquei. Ele me abriu diversas possibilidades de ação, como convites para palestras e locais para publicação de meus textos seguintes. Suas ideias básicas estruturaram minhas reflexões sobre o tema nos anos que se seguiram.
REFLEXÕES
SOBRE OS MOVIMENTOS “AMBIENTALISTAS”, DE “LIBERTAÇÃO ANIMAL” E “VEGANOS” SOB A ÓTICA DO CONCEITO DE “NATUREZA” EM
TEMPOS DE CAPITALISMO
O objetivo deste texto
é refletir sobre como a postura e os objetivos dos movimentos ambientalistas e
vegetarianos / veganos devem ser alterados pelo aprofundamento de discussões
teóricas que deveriam estar no centro de suas preocupações.
Para isto, discutirei
qual o conceito de “natureza” vigente em nossa sociedade, como esses movimentos
o estão reproduzindo, e porque isto deve ser mudado para que se possa perceber
quais são, de fato, os alvos que devem ser atingidos nestas importantes lutas.
O Conceito de Natureza como forma de compreender a
realidade
Poucas vezes se vê em
nossa sociedade o pensamento de que muito do que não caminha do melhor modo
possível para a maioria das pessoas pode advir de questões de cunho conceitual,
de discussões teóricas que, em sua dimensão prática, ajudam a moldar o mundo
como é.
Um exemplo de grande
importância é o que nossa atual sociedade reconhece como natureza. Vejamos
então algumas questões para se iniciar a reflexão sobre este tema.
Cada pessoa, dependendo
de como vive, possui com a terra, e, portanto, com a Terra, certo tipo de
relação e identificação, como nos mostra Carvalho: “Por exemplo, se para um empresário de mineração natureza é fonte de
matérias-primas de onde extrai a mercadoria com a qual obterá lucros, já para o
camponês, natureza é meio de sobrevivência, ou, de outro lado, se para o
especulador de terras natureza é investimento imobiliário, já para os índios é
um espaço de vida que não se vende nem se compra.”.
Vemos então que o que
chamamos de “natureza” é algo socialmente, historicamente e geograficamente
constituído. Assim, existe uma visão do que seja natureza que se tornou a mais
usada nas sociedades ocidentais atuais: a de que “natureza” é algo externo ao
homem.
Um grande passo na
direção de uma mudança nas relações sociais (e, portanto, ambientais)
existentes é a percepção de que o homem é também natureza, assim como o que ele
produz. A natureza não pode ser entendida simplesmente como o lugar onde os
homens moram e tiram as coisas para seu sustento, visão esta muito disseminada
como senso-comum, e que é um motivo central no avanço das degradações
ambientais postas.
Humanidade e natureza
são na verdade uma coisa só. Podemos compreender então que quando um homem
explora outro homem, está explorando uma parte da natureza. Provavelmente,
estará também explorando o resto dela, ou seja, tudo é explorado. Hoje isso se
dá em nome da acumulação capitalista, como veremos em breve.
Portanto, essa
compartimentação da natureza, não só entre homem-natureza, mas entre todos os
seus elementos, que são vistos separadamente, como matérias-primas cuja
finalidade é servir à produção de bens, é algo desenvolvido através da história
e das visões de mundo de cada sociedade. Gonçalves nos mostra que “toda sociedade, toda cultura cria, inventa,
institui uma determinada idéia do que seja natureza.”.
Sobre isso, Carvalho
diz: “a natureza sequer teria sido
reconhecida enquanto alteridade (…) distinta da dos homens, se as relações
sociais não tivessem conduzido historicamente a esta separação entre o ´mundo
natural` e o ´mundo social`“.
A visão de que o resto
da natureza é inferior aos humanos e que é nosso direito (e mesmo nosso dever,
em alguns casos) usá-la como quisermos pode ser facilmente e constantemente
encontrada em tradições muito presentes até os dias atuais, como a tradição grega,
principalmente de linha aristotélica e a tradição judaico-cristã, tanto no
Velho, como no Novo Testamento. Essas duas tradições acabaram se misturando e
seus ecos se fazem fortemente presentes em todas as sociedades ocidentais.
Porém, a visão compartimentada de mundo, como colocada acima, foi claramente
posta como corrente de pensamento a partir de Descartes e seus seguidores,
justificando assim certa visão de mundo que viria a ser dominante em
praticamente todo o planeta, principalmente no ocidente, sendo seguida ainda
hoje, por muitos, como a visão verdadeira de mundo. Em seu livro Discurso Sobre
o Método, Descartes chega a dizer que aprendendo sobre a natureza e sua força “poderíamos empregá-los da mesma maneira em
todos os usos para os quais são próprios e assim nos tornar como que senhores e
possuidores da natureza”.
A filosofia cartesiana
enquanto modo de se compreender o mundo baseado em uma visão mecanicista da
natureza foi altamente adequada para o crescimento da burguesia mercantil, por
ter sido a natureza dessacralizada. Ou seja, por ter sido tirada a visão sagrada
(Católica) de mundo existente durante o Feudalismo, foi possível passar a
explorar a natureza de um modo muito mais agressivo, sem culpas ou preocupações
de cunho metafísico, pois uma moralidade baseada no temor a um deus que poderia
se enervar com certos tipos de agressão à sua criação não mais era um grande
problema para a emergente burguesia. Podia-se, então, compartimentar a
natureza, esquartejá-la, pois era algo morto, não mais habitado por deuses. A
natureza virou matéria-prima, os animais viraram máquinas.
O século XIX reforçou a
visão cartesiana de mundo, pois foi o momento do nascimento das disciplinas
científicas como conhecemos hoje. Com a idéia de que “natural” e “social” são
instâncias diametralmente diferentes da realidade, são criadas as ciências ditas
naturais e as ciências ditas sociais, que aparentemente, assim como postas para
a sociedade pelos acadêmicos devotos desta falsa divisão, são ciências que
atuam em campos totalmente diferentes, e deste modo, a idéia de natureza como
algo compartimentado e separado da humanidade foi altamente reforçada. Assim,
disseminado como senso-comum, o conceito parece algo estático, indiscutível. A
simples idéia de que o que “todos” chamam de “natureza” pode ser outra coisa
que não aquela que “todos” chamam aparentemente desde sempre, parece ridícula e
sem interesse para muitos.
Muito se diz hoje,
principalmente por movimentos ambientalistas, que o homem está destruindo a
natureza. Porém, não se diz qual homem está destruindo a natureza, nem o que se
está chamando de natureza. Com certeza não é o índio nem o camponês clássico (não
ligado ao sistema capitalista) que estão destruindo a terra onde vivem e
retiram o que é necessário para suas sobrevivências. Quem destrói o seu meio
ambiente é um certo homem sob uma certa cultura, que gera um certo conceito de
natureza, que na prática é a própria relação do homem com o resto da natureza.
No mundo ocidental moderno essa relação pode ser entendida como o próprio modo
de produção capitalista.
Este modo de produção
tende a separar cada vez mais o homem dos locais onde se poderia retirar os
elementos básicos para sua sobrevivência, principalmente no que se refere à sua
alimentação. Deste modo, estes homens não terão outra escolha a não ser estarem
subordinados ao capital, pois não tendo como retirar diretamente da terra o
necessário para o seu sustento, faz-se necessário comprar os alimentos, roupas
e tudo mais no mercado. Para comprar é necessário possuir dinheiro. Para ter
dinheiro necessita-se de emprego. Com gente necessitando de emprego para comer,
o burguês pode explorá-los. Com gente sendo explorada, produzem-se mercadorias
que são postas no mercado para que essas mesmas pessoas, impossibilitadas de
ter acesso direto a estes produtos, possam obtê-los através de sua compra. Com
isso gera-se um ciclo de acumulação de capital.
Portanto, a questão
central nas discussões sobre impactos causados ao meio-ambiente não pode ficar
simplesmente no consagrado “o homem é mal e destrói a natureza”. Há que se
aprofundar esta discussão. O fato é que o modo de produção a nós imposto, o
chamado Capitalismo, necessita imprescindivelmente, para seu funcionamento, da
exploração da natureza, sendo natureza não só árvores, animais não humanos,
solos, águas, etc., mas também os humanos e suas sociedades. Tudo é explorado
em nome da produção de mais-valia como meio de acumular capital.
Sobre os Movimentos de Proteção do Meio-Ambiente
Hoje, com tantos
movimentos ambientalistas ativos, ainda continuamos com os problemas ambientais
se agravando cada vez mais. Isso se dá, logicamente, pela força das empresas,
porém também pelo caráter destes movimentos, pois a maioria não tem uma visão mais
centrada sobre o funcionamento do mundo moderno, ou seja, uma reflexão
conceitual que permita compreender a realidade em suas relações mais profundas,
no que podemos considerar por essência da realidade, num nível de análise
diferente da aparência mais superficial.
Tais movimentos, se
pretendem realmente uma transformação no modo como a humanidade se porta em
relação ao resto da natureza, necessitam primeiramente acabar com esta divisão
homem-natureza, que, como vimos, é uma falsa visão que serve como meio de alienar
o ser humano do que necessita para sua sobrevivência, além de ser uma alienação
de cunho ideológico que não permite que se perceba com facilidade o modo como a
exploração da natureza ocorre com a finalidade de servir àqueles cujo interesse
é o acumulo de capital.
Além disso, cabe aos
movimentos ambientalistas sempre lembrar que quando se briga por algo
específico não se deve esquecer o todo que gerou este problema. Por exemplo,
quando se briga pelo massacre de algum animal, não se deve esquecer que quem o
está matando pode estar fazendo isto por um salário, pela sua necessidade de
dinheiro para sobreviver, portanto há alguém o explorando e há todo um sistema
de exploração montado que explora a natureza com um todo, seja um animal como
uma baleia ou uma tartaruga, seja o trabalhador que é obrigado a matar estes
animais para ter sua remuneração que trocará por comida, roupas e outras
necessidades básicas. Não estou querendo justificar a caça a estes animais,
fato que repudio e que creio que se deva sempre lutar contra, porém, estou
mostrando que a briga é muito mais ampla. Brigar contra os navios baleeiros é
válido desde que se brigue também contra todo o modo de produção que gera a
caça de animais em nome da acumulação de capital sem se preocupar com os danos
causados ao meio ambiente ou à vida destes seres sensíveis: o modo de produção
capitalista.
Neste momento cabe
fazer uma pequena ressalva: é lógico que em modos de produção não capitalistas
também pode haver massacre de animais e destruição ambiental, mas o que tento
mostrar é que enquanto houver Capitalismo, cujo objetivo é o acúmulo de capital
baseado na exploração da natureza (inclui-se aí o ser humano enquanto força de
trabalho), não será possível uma real transformação no modo como a humanidade
se relaciona com “ela”. O Capitalismo não irá deixar de explorá-la, pois a
exploração é a espinha dorsal do Capitalismo.
Grande parte dos
movimentos ecológicos atuais não é contra o modo capitalista de produção, e
muitos são até parceiros, tendo apoio da chamada iniciativa privada, ou seja,
as empresas capitalistas. Isso se dá pois a principal luta deles é a
conservação dos recursos que os humanos destroem e que servem de matéria-prima
para estas indústrias. Natureza para estes movimentos e indústrias é apenas uma
fornecedora de matéria-prima e, portanto, deve-se conservá-la. Com isso,
cria-se algo meio obscuro, pois no discurso destes movimentos (geralmente na
forma de ONGs) a natureza é destruída por um homem despersonalizado e abstrato.
Não se percebe (ou ao menos não se revela) que o que existe são homens
concretos que são também explorados pelo mesmo interesse que se explora o meio
ambiente. Esses movimentos acabam por apoiar o modo de produção capitalista
(por isto são apoiados por ele), pois fazem com que seja conservada a
matéria-prima para as indústrias e ao mesmo tempo são escondidas as relações
cruéis contra os próprios homens, não se protestando contra o modo de produção
como um todo. Esses movimentos podem ser chamados de “Capitalismo verde”, e
são, infelizmente, a esmagadora maioria dos movimentos ditos “ambientalistas”
ou “ecológicos” que possuem acesso ao grande público, principalmente no que diz
respeito à veiculação de suas idéias nas grandes mídias, com o apoio financeiro
da iniciativa privada ou do próprio governo estatal que, logicamente, também
possui seus interesses capitalistas na exploração de seu território e de seus
habitantes.
Sobre a “Libertação Animal” e o Veganismo
Colocadas estas
primeiras reflexões, posso prosseguir no sentido da discussão das questões
sobre o modo como os animais são encarados em nosso mundo.
Algumas reflexões muito
bem feitas já foram realizadas sobre este tema, destacando-se, para falar do
que já foi traduzido para o Português, as obras de Peter Singer e Tom Regan,
além dos brasileiros, como, por exemplo, a professora Sônia T. Felipe. Como reflexão
no campo da ética estas obras nos apresentam argumentos suficientes para se ir
contra qualquer tipo de exploração dos animais, dada a senciência (capacidade
de sentir e ter consciência de seus sofrimentos) destes seres, dados os
impactos ao meio-ambiente resultantes da indústria da carne e outros produtos
de origem animal, aos fatores ligados à questão da fome no mundo, entre outros
pontos de análise. O objetivo aqui não é repetir o que já foi escrito nestas
obras, mas colocar algumas das discussões do que hoje é conhecido como
movimento de libertação animal dentro da proposta deste artigo, numa tentativa
de aprofundar a discussão em certos sentidos e apontar para possíveis
resoluções para estas problemáticas.
Novamente coloco a
questão do conceito de natureza para abordar esta questão. Animais são parte na
natureza. Todos os animais. Por exemplo, o ser humano e as relações que possui
com o resto do mundo. O fato de existir conflitos entre os animais nos mostra
que um conceito de natureza que a vê como algo bucólico, paradisíaco e distante
é algo irreal. A grande questão não é apontar ou propagar uma idéia fictícia de
que natureza é sinônimo de paz total. O conflito é parte da natureza. A
questão, portanto, é que animais não humanos podem ter conflitos entre si, mas
só o animal humano é capaz de explorar premeditadamente, intensivamente e
imoralmente outros animais, o que faz com que essa exploração seja muito pior
do que a feita por parasitas de outras espécies sem capacidade de
discernimento, abstração e reflexão. Só o ser humano pode tornar seu mundo mais
(ou menos) pacífico, sabendo lidar com os conflitos e evitando os
desnecessários.
Em linhas gerais, a
relação que o ser humano atual possui com outras espécies animais pode ser
definida em uma palavra: especismo. Ou seja, há um preconceito colocado em
nossa sociedade que diz que outras espécies animais são menos dignas de
respeito e bons tratos do que nossa espécie. É o mesmo discurso do racismo, do
sexismo, ou de outros preconceitos de caráter excludente de uma parte dos seres
por razões não explicáveis ou não defensáveis moralmente.
Assim, animais não
humanos podem ser engaiolados, enjaulados, acorrentados, treinados, debicados,
isolados, paralisados, testados, pendurados… e assassinados. Mortos por um
motivo mesquinho e não mais justificável no mundo atual: para que seu cadáver
seja devorado. Não é mais possível justificar essa barbárie, pois hoje sabemos
que nutricionalmente o consumo de carne, leite e ovos não apresenta nenhum
diferencial no que se refere aos nutrientes necessários ao ser humano em
relação ao que se pode obter através de fontes vegetais, a não ser aspectos
negativos, como o excesso de gorduras. Ambientalmente a indústria da carne é
repulsiva, por usar e poluir uma quantidade gigantesca de água, por destruir
áreas gigantescas de florestas para a criação de pastos ou de grãos para a
alimentação do gado, entre outros inúmeros impactos.
Se alimentar ou usar
elementos de origem animal em qualquer tipo de produto é uma opção infeliz e
injustificável. Como esta discussão se encaixa no eixo central deste artigo?
Para que essa repulsiva
indústria exista nos moldes que existe hoje, não podemos enxergar-nos como
parte desta mesma natureza que é presa, torturada e abatida nas
fazendas-fábricas e seus matadouros. Não podemos nos sentir parte desta
situação assustadora. Aí, mais uma vez se encaixa a proposta do conceito do que
é a natureza posto para nós como uma verdade indiscutível, como analisado no
início deste artigo. O ser humano não se vê como um animal, pois considera que
os animais sejam aqueles seres inferiores e sem consciência que estão aqui para
nos servir. Até bem pouco tempo atrás se mudássemos a palavra “animais” por
“negros” na última sentença, ela seria lida com a maior tranqüilidade, sem
causar espanto em grande parte da população não negra.
Novamente voltamos à
questão: toda a natureza é explorada do modo como é hoje por um certo objetivo:
a acumulação de capital, que é o objetivo do capitalismo.
O que é uma vaca para
um burguês? É uma máquina onde se coloca grãos e cereais baratos e abundantes
(que poderiam alimentar um enorme número de pessoas a baixos custos) e se
retira, ao final do processo (que é cada vez mais rápido, dado o uso de
hormônios e antibióticos), carne com um valor comercial bem maior do que o dos
grãos e cereais, que será vendida para uma parcela da população mundial que
possui dinheiro para isto e está disposta a trocá-lo por este pequeno e
injustificável prazer degustativo momentâneo.
A vaca, a galinha, os
porcos, enfim, todos os animais são apenas matéria-prima para indústrias
altamente lucrativas para seus donos. Donos estes que não se importam nem o
mínimo com o sofrimento destes animais, com as horríveis condições de vida a
que são submetidos (leia “Libertação Animal”), com os impactos ambientais
calamitosos provocados por esta indústria, com o número dezenas de vezes maior
de pessoas que poderiam ser muito bem alimentadas com as fontes vegetais de
nutrientes se não as déssemos para o gado, com a grande área de floresta que
seria poupada do desmatamento para a criação de pastos e grãos, com a imensa
quantidade de água que é desperdiçada ou poluída com dejetos de animais,
antibióticos, hormônios e outros produtos químicos, etc.
Aliás, é bom colocar
que é claro que a problemática da fome no mundo pode (e deve) ser observada sob
o prisma da concentração de renda e da concentração fundiária existente em
vários locais do mundo, inclusive, de forma violenta, no Brasil. É impossível desconsiderar
isto. Porém, é bom ressaltar que a questão não é só esta. Suponha que um dia
estas concentrações terminem e todos possam ter acesso ao que quiserem, pelo
menos para se alimentar, a mais básica das necessidades. Se todos, considerando
a população mundial atual que cresce vertiginosamente, desejarem pratos à base
de carne, leite e ovos, de acordo com pesquisas recentes, precisaríamos de pelo
menos quatro planetas como a Terra para criar todos esses animais. E este
número varia para mais, se considerarmos outros luxos de classes mais abastadas
e consumidoras de produtos industrializados em excesso. Ou seja, mesmo que se
quisesse, seria impossível alimentar toda a população do mundo com carne, ovos
ou leite. Não há condições pelos próprios limites do planeta. Portanto, é
totalmente contraditório se defender uma posição contra o modo de produção
exploratório hoje existente e continuar incentivando o consumo de animais. Não
é possível existir uma sociedade mais justa e igualitária no mundo se não se mudar
o mais essencial dos atos, que deveria ser praticado por todos algumas vezes ao
dia: se alimentar.
Temos então o
Capitalismo, com seu conceito alienante de natureza, explorando a tudo e a
todos em nome da acumulação de capital. A exploração de animais não humanos é
um destes tipos de exploração. Como qualquer tipo de exploração, principalmente
de seres sensíveis, é injustificável e imoral, assim como a exploração do ser
humano transformado em força de trabalho nas mãos destes mesmos carrascos.
Libertar os animais
desta terrível situação só pode ocorrer simultaneamente à libertação do homem
desta mesma situação exploratória, assim como a libertação de todo o planeta.
Uma das mudanças essenciais para se chegar a isto é alterarmos o que consideramos
ser nossa natureza e nos vermos novamente integrados ao resto do mundo, agindo
em prol do bem comum e da melhoria da qualidade de vida de todos.
A burguesia, com o
auxílio de uma de suas mais execráveis armas, o marketing, embute nas pessoas
cada vez mais necessidades superficiais que se tornam centrais na vida de um
número altíssimo de pessoas, mesmo naqueles que não podem pagar por elas, mas
que não por isso não possuirão o desejo de um dia possuir algo daquilo que o
protagonista acéfalo da novela adquiriu, ou do que o comercial que associa
mulheres semi-nuas e juventude desmiolada ao sucesso e bem estar nada
sutilmente lhe ordena comprar. Tais necessidades fazem a produção de
mercadorias crescer vertiginosamente e continuamente, a acumulação de capital
ser cada vez maior e, portanto, a exploração da natureza alcançar patamares
cada vez mais insustentáveis: mais exploração de matéria-prima, de trabalhadores
ou de animais usados como ingredientes ou como cobaias em inúmeros e sofridos
testes em seus organismos a cada novo ingrediente ou fórmula desenvolvida. Cada
novo produto lançado é uma nova facada contra nós mesmos. É um atentado contra
a natureza. É um prolongamento do holocausto imposto aos animais.
Ai das indústrias se as
pessoas tivessem o discernimento de que elas são também natureza e de que não
podem ser vistas como matéria-prima. Sim, as pessoas são vistas no mesmo nível
de importância que um pedaço de bauxita pelos burgueses. Apenas têm nomes
diferentes no processo exploratório: um é matéria-prima, o outro é
força-de-trabalho. A única diferença é que este último precisa comer, e
portanto precisa de seu ínfimo salário, não que isso seja um grande problema,
já que o salário é uma pequenina parte valor do que essa força-de-trabalho cria
com aquela matéria-prima. O resto é lucro. E se há lucro, é com a natureza que
o burguês vai se preocupar? Que se explore mineral, vegetal, animal não humano
ou animal humano. É assim que o modo de produção que estamos inclusos opera.
Se quisermos caminhar
na direção de um movimento de “libertação animal” que possua alguma chance de
sucesso, não podemos deixar estas questões de lado. Libertar os animais de sua
condição de vida atual sem pensar em libertar também os humanos e todo o resto
da natureza das reais forças por trás das explorações, é um trabalho fadado ao
fracasso. Não podemos querer um capitalismo vegano, como parece ser o caso em
muitos discursos. Capitalismo e veganismo, como tentei mostrar durante este
texto, ainda que com outras palavras, são práticas contraditórias. Não podemos
deixar que o capitalismo se aproprie do vegetarianismo como se este fosse
apenas um nicho de mercado. Não somos um nicho de mercado. Devemos ser uma
opção real de luta contra qualquer exploração, no caminho de um futuro mais
justo, igualitário e, para todos os seres, prazeroso.
Conclusões propositivas
- Devemos repensar o que entendemos
por natureza e no que este repensar muda em nossa postura com o mundo.
- Devemos perceber que movimentos
pela preservação do meio ambiente, assim como movimentos de defesa dos direitos
dos animais e de propagação do vegetarianismo/veganismo não alcançarão
resultados totalmente satisfatórios se não conversarem com os chamados
movimentos sociais. Sendo a sociedade parte da natureza e sendo toda a natureza
explorada pelo modo de produção capitalista, todos estes movimentos devem
perceber suas estreitas relações e lutar juntos por um mundo melhor.
- Ações diretas, pontuais e parciais não podem ser deixadas de lado, mas não podem ser feitas sem ser parte de um projeto maior e mais profundo (radical). Para isso, esta conversa entre movimentos diferentes, assim como o estudo e discussão das bases teóricas e dos objetivos dos movimentos devem ser estimulados.
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