(2016) Apenas mais uma manhã
Hoje, mais um dia útil. Vou para o trabalho.
Cedo. Seis da manhã.
Cruzo municípios, como todo dia. Como todo
dia, observo o mundo e sou obrigado a observá-lo.
Na rodovia, meu dia inicia-se com um cão
atropelado ao meio-fio. Morto. Paisagem cotidiana para quem cotidianamente
circula em estradas.
Sigo. Rádio ligado em uma estação de notícias.
Entrevista com o criador de uma franquia de açougues gourmets. Impressionante
como consegue falar com tanta tranquilidade de seus “negócios” sem a mais
remota consideração sobre o óbvio fato de que seu “produto” são animais e que
animais não são coisas inanimadas. Ele lembra, com orgulho, da postura de seu
pai, pecuarista, que, em seu empreendedorismo diferenciado, possuía a nobre
postura de olhar para o boi pensando na carne, não apenas no ganho de peso.
Em seguida, outra entrevista. Um pesquisador
que trabalha no desenvolvimento de uma vacina contra o vírus Zika. Relata
objetivamente o processo da pesquisa. Haverá testes em ratos e primatas.
Vêm então os comerciais. A propaganda fala
sobre um chiclete sabor carne para cães.
Da janela do veículo, além das tradicionais
banquinhas de bolo, pão de queijo e café com leite nas calçadas, vejo um
cidadão enxotando brutalmente as pombas de seu caminho com um grande
guarda-chuva fechado. Outro veículo é atirado sem o menor senso de culpa para
cima de um grupo de pombos que ousava ciscar na porção territorial estipulada
para a passagem de latarias motorizadas. Cena esta, batida de tão comum.
Esta foi apenas mais uma manhã. Em realidade,
apenas mais um início de manhã. Apenas a primeira hora de minha existência
coletiva neste dia.
Em minha mente, como de costume, ressoa e
repercute renitentemente a frase apresentada no prólogo do interessantíssimo
filme O Enigma de Kaspar Hauser: “estes gritos assustadores ao redor, são o que
chamam de silêncio?”
E começo a trabalhar.
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