(2009) O Feijão mágico
Uma vez recebi uma estranha carta não assinada. Dizia que
havia se afeiçoado muito por opiniões minhas publicadas em certo texto, onde
expunha minha visão à favor da libertação dos animais das mãos de seus
carrascos humanos. Dizia que não podia dizer por carta, mas havia um porquê
muito profundo neste interesse em minha pessoa. Combinamos um encontro em um
famoso parque de São Paulo.
Pequeno, com uma longa barbicha e ar bem simpático,
apresentou-se como “o Gênio”. Contou-me sobre sua história de vida. Havia
também vivido uma vida de clausura graças à humana sede de poder. Viveu por
centenas de anos confinado em uma espécie de lamparina, sendo-lhe permitida a
saída apenas para realizar desejos daqueles que a possuíram. Pedidos
mesquinhos, invariavelmente, como era de se esperar.
Não me contou sobre como escapou desta condição, mas hoje
vive livre, ainda que praticamente sem sair de sua pequena chácara nos
arredores da cidade.
Viramos grandes amigos. Nossas conversas acerca da liberdade
e da maldade humana viravam noites, regadas por inacreditáveis chás do oriente.
Após meses de amizade e convivência assídua, percebeu o
Gênio que era eu um grande apreciador de feijões e leguminosas similares e
resolveu presentear-me. Creio que, por ter nascido em terras tupiniquins, parte
de meus genes são constituídos de arroz e feijão, possivelmente interligados
por finas fatias de couve e envoltos por uma grossa camada de pimenta e farinha
de mandioca, mostrando, mais uma vez, o processo de adaptação entre códigos
genéticos e ambientes. Mais um ponto para os neodarwinistas!
Estava eu almoçando em um dia como qualquer outro, quando,
em local isolado do prato, avistei um belo feijão multicolorido. A primeira
impressão foi de surpresa, seguida de gozo estético, dúvida e nova surpresa.
Muitas cores se revezavam em um impressionante dégradé. Algo nele me levou a
devorá-lo. E algo bateu.
De repente, não me perguntem como, estava em um sítio. Meu
já não tão recente amigo também estava lá. Entendi que havia me concedido a
realização de um desejo. Porém, diferentemente de seus métodos da época em que
era escravo, não me deixou escolher ao meu bel prazer. Achou ele mesmo nas
entranhas de meus confusos neurônios algo que seria de fundamental importância
para minha existência. Disse-me para relaxar e aproveitar a viagem. Achei que
seu olhar tinha um quê de Timothy Leary e embarquei na onda.
Vi-me então em outro lugar. Um pasto. Sentado de frente para
uma vaca que olhava para mim atenciosamente. Retribuí o gesto e olhei-a nos olhos.
Havia algo de diferente naqueles olhos. Senti-me como certo aluno de certo
professor gorila, com o qual pude travar certo contato há alguns anos. Após
minutos de olhares profundos, parecia que havíamos criado certa intimidade.
Passei a ouvir uma voz. Um canto. Uma voz feminina cantando palavras que
conhecia em uma melodia que também conhecia. Para minha surpresa, a vaca deu-me
uma piscadinha, como que confirmando que eu não estava ficando louco, ou talvez
provando que o estava completamente. Estava realmente ouvindo o que se passava
na mente daquela adorável criatura? E eu continuava a ouvir:
I ain't
gonna work on Maggie's farm no more.
No, I ain't
gonna work on Maggie's farm no more.
Well, I try
my best
To be just
like I am,
But
everybody wants you
To be just
like them.
They sing
while you slave and I just get bored.I ain't gonna work on Maggie's farm no
more.
Parece que possuíamos algo em comum além do fato de adorar
comer folhas. Era uma fã do Dylan. Mas havia ainda algo mais naquele canto, que
o fazia soar como uma worksong de escravos catadores de algodão do delta do
Mississipi, ou como os blues cantados por seus descendentes. Olhei para o lado
e vi a placa:
FAZENDA MAGGIE &
FILHOS
– DA NATUREZA PARA
SUA CASA –
LEITE DE VACAS
FELIZES
Senti algo que nunca sentira antes, e pus-me a cantarolar
com minha nova amiga, sentindo sua dor e ânsia de liberdade. Uma voz cantava How many years can some people
exist, before they're allowed to be free? Mas outra entoava How many years can
some animals exist, before they're allowed to be free?
Antes da primeira gota de lágrima, estava novamente em casa,
defronte ao prato de comida. Triste, profundamente triste, por saber que minha
companheira de sentimento e gosto musical estava ainda em seu cárcere em algum
lugar do mundo. Mas, ao mesmo tempo, feliz por olhar para meu vegetal prato e
senti-lo como um verdadeiro manifesto anti-crueldade.
The times
are a-changing? Eu não sei, mas incessantemente me questiono acerca
daqueles que ainda alimentam-se do sofrimento alheio: how many years must one
man have, before he can hear animals cry? Se você, caro leitor, sabe que something is happening here, but you
don't know what it is, the answer, my friend, is blowing in the wind. The
answer is blowing in the wind.
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